“[…] Quanto a mim, sempre tive certo apreço por repartições abarrotadas de papéis e tribunais. Poucas coisas me despertam mais frêmitos do que cartórios e suas burocracias de selos e carimbos e assinaturas ou, ainda, o peso implacável das palavras de um juiz ratificadas pelo poder dos soquinhos histéricos do malhete. Tudo isso, talvez, porque ache que o grande segredo da vida seja melhor manifesto em termos de contratos e sentenças. Em verdade, o que desejamos mais ardentemente é que a vida, o futuro e as pessoas aos nosso redor fossem signatários de um contrato, algo como uma promissória. Nada nos faria mais felizes do que vermos a pletora de possibilidades que todos os dias todas as vidas contêm, reduzidas a um contrato bem feito, cheio de especificações, notas de rodapé prevendo todos os casos e fechando todas as portas que não nos agradam. Ficariam, por força de um contrato – por que o quê tem mais valor do que um belo calhamaço de papel com selos (de preferência de cera e timbre)? – proibidos as mortes indesejadas, as desilusões amorosas, enfim, os reveses da vida. Diante de um infortúnio, apontaríamos a cláusula correspondente, com um sorriso triunfante e diríamos: “Não, não é permitido pelo inciso 4° do artigo 237!”. E caso a vida insistisse no erro, ou a pessoa amada permanecesse obstinadamente no engano, haveria um justo juiz que condenaria o infrator à reparação imediata, afinal, como não fazer respeitar um contrato com especificações, notas de rodapé e selos e carimbos? Que a primeira cláusula fosse determinando a jurisdição de valia do contrato a todo aquele que não o autor do contrato, não precisa ser dito. Igualmente não há necessidade de dizer que nos consolamos pela ausência de tais papéis nos cercando de outros papéis: cartas de amor, livros, muitos livros (para cada uma das situações de contrariedade, há sempre um livro já escrito por alguém ao qual se pode recorrer) e contratos banais sobre a venda disso ou a cessão daquilo.
Mas não conseguimos nos livrar é da tentação de esfregarmos na cara de quem quer que seja, a própria morte ou um amor adolescente, amarelados rascunhos e projetos de contratos jamais assinados. Ahn, e como eu quisera o meu malhete, meu amado martelinho, para bater e decretar que a vida jamais me surpreenderia porque, afinal, só eu posso ser livre, só eu posso ser Deus!”
Marc Soitraeil, Sob a égide de Tártaro, § 22
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