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Algumas notas sobre Heidegger

– Que Heidegger seja uma dos maiores filósofos de fins do século XIX e do XX deixa-se ver mais pelo erro da crítica, em grande parte advinda da “tradição” analítica, do que através sua recepção fervorosa.

– A tão falada Kehre (Viragem) do pensamento de Heidegger, ocorrida nos anos 1930, e que geralmente é utilizada como marco distintivo de uma torção de seu pensamento para outro âmbito ou mesmo de uma nova orientação é algo bastante compreensível se os problemas de SZ são corretamente compreendidos à luz tanto dos problemas do contexto do pensamento heideggeriano anterior a tal obra, quanto do status quaestionis de problemas próprios do XIX. Se a Kehre é compreendida como um deslocamento de ênfase do projeto – da analítica do Dasein para a questão do sentido (Besinnung) do ser, ela está muito mais próxima dos problemas de Frege de Über Sinn und Bedeutung e do último Husserl, do que distante deles, sobretudo em se tratando da percepção crescente do papel da linguagem e da compreensão do sentido último da técnica. Assim, não deixa de ser estranho filiar a virada a um afastamento puro e simples de seu período ligado ao Neokantismo, em especial se se recorda o caminho feito através de suas teses de doutorado e de habilitação.

– O interesse do jovem Heidegger pelo problema dos juízos no Psicologismo, tema da tese de doutorado (1913), e das categorias em Duns Scoto, questão da tese de habilitação (1915) está intimamente ligado aos problemas centrais de Sein und Zeit, bem como da produção posterior. De fato, sem a percepção dessa conexão, mesmo a compreensão da obra de 1927 fica bastante prejudicada. Tais conexões são mais prementes do que aquelas referentes à Kehre.

– Visto no sentido cronologicamente contrário, pode-se compreender o projeto de Sein und Zeit (1927) como sendo o paroxismo das questões gestadas nos trabalhos de 1913 e 1915, bem como de cursos, preleções e textos menores, como o artigo sobre o problema da realidade na Lógica Moderna (1912) e o curso de Lógica centrado em Aristóteles (1925-1926). Se Heidegger visa uma Ontologia Fundamental em 1927, é porque ela se mostra necessária como solução ao (1) problema do sentido das categorias como tentativas frustradas de fixação do sentido do Ser na trajetória da Metafísica tradicional, em estreita conformidade com os problemas legados pelas teorias do juízo, sobretudo no Psicologismo recente. Nem o domínio do ser pode ser apreendido por categorias estritamente transcendentais – como se pode derivar do empreendimento kantiano e que é radicalizado pelo Neokantismo -, nem pode prescindir da (2) questão pela operação de tais categorias por sujeitos empíricos ou “não-fantásticos”, para usar a descrição heideggeriana dos sujeitos puros ou transcendentais, icônicos da tradição moderna desde Descartes ao Idealismo Alemão. Mesmo a tentativa de empreender esta conexão a partir de uma doutrina dos juízos psicologista leva, inexoravelmente, ao fracasso cético, como já apontado por Frege e Husserl. A intuição de Heidegger acerca do viés que deve ter precedência no tratamento da questão do Ser – Zuhanden, ao invés de Vorhanden – explora exatamente a dimensão obscurecida da necessária Wirklichkeit do Dasein. Que Heidegger aluda aos Existenciários (Existentiall) como categorias fundamentais da Ontologia mais fundamental que é condição de possibilidade das demais, bem como das demais ciências específicas, não é um aspecto contingente.

Vejam-se os seguintes excertos da conclusão da tese de 1917:

“These contexts of problems can be understood to be ultimately decisive for the problem of categories only if we recognize a second basic task of any theory of categories: situating the problem of categories within the problems of judgment and the subject.

(…) Because of its regress to a fundamental sphere of problems having to do with subjectivity (the strata of acts), the theory of meaning is, in spite of its immediate schematic character, especially significant for a philosophical interpretation of medieval Scholasticism in connection with the problem of categories. The investigation of the relation between the modus essendi [mode of being] and the “subjective” modi significandi [modes of meaning] and intelligendi [understanding] leads to the principle of the material determination of every form, which for its part includes in itself the fundamental correlation of object and subject.”

Da mesma forma, nomear na mesma tese a necessidade deste programa mais geral como a urgência de uma “Lógica subjetiva”, não é um acaso.

– Desse modo, o projeto heideggeriano não pode ser senão inserido no panorama da virada anti-Hegel do XIX – a partir da crítica de F. A. Trendelenburg – que condicionou a quase totalidade das opções posteriores nas tentativas de superação dos problemas legados tanto pela filosofia crítica, quanto pela tentativa de solução do Idealismo posterior, em consonância com a tônica dos esforços de Brentano, Frege, Husserl e os neokantianos.

 

G. Ferreira

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