Por recomendação do meu amigo Francisco Razzo, comecei a acompanhar uma de suas discussões com um ateu (ou uma atéia, ao que parece). Em linhas gerais, a questão colocada vai nestes termos:
Há quem defenda que a moral tem uma origem transcendental, mas as recentes investigações no campo da neurociência e biologia comportamental parecem sugerir uma outra explicação.
Como se pode perceber, o problema é em relação a uma fundamentação transcendental da moralidade. Mas antes de dizer qualquer coisa – antes mesmo de discussão bibliográfica – a respeito da referida tese a autora comete um erro lógico grave, com consequência e desdobramentos não menos perigosos:
1. O oposto de transcendente é imanente. Ora, mas conceitos abstratos, filosofia e argumentos racionais são imanentes (= não transcendentes) mas não podem de jeito nenhum serem depreendidos da biologia ou da fisiologia A identificação entre “imanente” ou “domínio do estritamente humano” e “biologia” ou “fisiologismo” simplesmente é falaciosa. Nem a tentativa desesperada de filiar argumentos, juízos ou outros tipos de ações da razão a sinapses e, portanto, a causas químico-biológicas resolve; ficam completamente em aberto ao menos a questão de qual explicação última para a existência de tais processos, bem como a questão da existência da diversidade desses juízos e argumentos, sem falar naquela do entendimento e do convencimento racional intersubjetivo através do reconhecimento da lógica ou do “sentido” da argumentação, que visivelmente não podem ser reduzida à fisiologia.
2. Já Aristóteles vê que a moralidade é exatamente o campo no qual fica patente a distância entre o homem e a natureza. Como diz o Estagirita, a natureza (physis) é o campo do sempre (aei), já as "coisas humanas" (ta anthropina) são o campo do "frequentemente". Só há o campo da eticidade porque ao homem é facultado fazer diferente do biológico. Esta distinção é fundamental e DEVE estar no início desse tipo de conversa. Só existe ética porque diferentemente do plano da natureza (e, portanto, da simples biologia), o plano da ação humana é aquele onde podem ocorrer mudanças provenientes da ação livre do homem, caso contrário nem haveria tal domínio, pois seríamos estritamente condicionados pela natureza, isto é, pelo biologismo.
3. Está aí embutido um pressuposto que já identifiquei em outros momentos e que chega a ser enervante, a saber, a oposição entre “transcendental” e “biologia” ou “neurociência” que, no fundo, quer significar “religião” ou “fé”, confinada no chiqueirinho da sensibilidade e “ciência” ou “objetividade” de outro, como último bastião da resistência da Razão (com “r” maiúsculo neoclássico). Não é o momento de se debater isto a fundo, mas a própria oposição posta nestes termos (sem eufemismos como “transcendental”) é absolutamente irracional.
UPDATE: Fui citado e comentado aqui. Abaixo, meu comentário ao comentário:
Caro O. Braga.
Primeiramente, obrigado pela referência e pela leitura e, nas grandes linhas, concordo consigo. Alguns outros comentários:
1. Devo lembrá-lo que minhas considerações se deram em referência a uma tese determinada, a saber, aquela que cito no início que, ela sim, opõe biologia e fé, por exemplo, e que tenta filiar de maneira EXCLUSIVA a moral ao fisiologismo.
2. Não creio que “empirismo” seja uma terceira categoria referente à “transcendente” e “imanente”. “Imanente” significa, em termos gerais, que o fim de algo ou uma ação está no próprio agente. “Transcendente” é, portanto, aquele ato cuja finalidade ou sentido está para além dele. É este o sentido de certos atos em Aristóteles e em Santo Tomás (”pensar” e “cortar”, por exemplo). Empírico, como claramente se pode ver, não se relaciona a esta categoria de atos, mas diz respeito à uma certa qualidade específica de um dado ou conhecimento em relação à sua origem (empeiría, experiência).
3. Contudo, concordamos que aquilo que não é transcendente não é necessariamente biológico (como queria a autora da tese que refuto). Mas isto é justamente o que eu desejava mostrar.
4. Não nego – e nem Aristóteles, cujo ponto de vista eu citei – que a natureza seja necessária ao desdobramento da moral. Entretanto, objeto firmemente que ela seja suficiente, como afirma a interlocutora.
Um abraço.
UPDATE 2: Gostaria de citar um trecho de Alasdair MacIntyre que bem ilustra o que aqui queremos dizer:
But man without culture is a myth. Our biologicalnature certainly places constraints on all cultural possibility; but man who has nothing but a biological nature is a creature of whom we know nothing. It is only man with practical intelligence – and that, as we have seen, is intelligence informed by virtues – whom we actively meet in history.
MACINTYRE, A. After Virtue, p. 150-151.
Queridão seu texto ficou ótimo
vou usá-lo como referência em meus debates.
Um abraço
Francisco
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Sim, sim.
E estou repassando nos acréscimos às discussões. Ainda acho que por fim nossos interlocutores irão apenas se restringir a manter sua posição por mera satisfação pessoal, sem jamais refutar (ou sequer se dar ao trabalho de considerar) os contrapontos apresentados.
Vou recorrer a Schopenhauer, sem dúvida e dizer que eles são inteligentes demais para meu intelecto limitado.
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