Lendo o excelente blog do Angueth, resolvi fazer uma sugestão de leitura neste post. Minha sugestão foi rechaçada a partir de algumas acusações ao autor. Assim, reproduzo abaixo meus dois comentários. Note-se apenas que o último deles, por exceder o tamanho permitido para comentários, só vai publicado aqui. Contudo, acho interessante postá-los também aqui já que, o que me incomodou ali, ultrapassa a figura em questão – von Balthasar – mas a meu ver atinge uma certa postura intelectual que julgo ser um tanto desonesta, mesmo por parte de alguns católicos sérios.
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Prezado Angueth.
A resposta, claríssima, é excelente. Mas permita-me uma sugestão. Creio que uma das melhores obras sobre o papado – não sobre sua história, mas sobre seu conceito – é "The Office of Peter and the Structure of the Church", do H. Urs von Balthasar. Há uma edição primorosa da "ignatius press".
Grande abraço.
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Caríssimo Angueth.
Sei que não é o seu caso. Leio regularmente seu blog e penso conhecer suas posições e sua seriedade. Mas tenho um certo fastio em ver, no meio católico sério, gente desprezando teses, livros e pensadores com a rapidez de uma canetada. Geralmente tal rapidez anda pari passu com uma tal aversão a livros que chega a dar pena. Basta dizer que a imensa maioria que usa o vocábulo "modernista" – reitero, não penso ser o seu caso, Angueth – não compreendeu 1/16 avos das teses filosóficas e teológicas da Pascendi Dominici Gregis.
O livro de Balthasar sobre o papado chega a ser precioso. De uma erudição e de tal força argumentativa que desancaria grande parte dos nossos "tradicionalistas" em sua pretensas capacidades intelectuais. No livro, o autor deriva o papado do prólogo do Evangelho de São João, ou seja, da própria Encarnação do Lógos, e analisa minuciosamente todas as formas históricas de oposição, seja ao primado de Pedro, seja à sua sucessão. De fato, não conheço nenhum estudo tão agudo sobre o tema.
Prezado Guilherme. Teses controversas pululam mesmo nos grandes. Claro que nas suas extensas leituras de Balthasar você deve ter se deparado com algumas. Bem, pode ser constrangedor saber que elas estão também em Orígenes, Justino, Tomás de Aquino etc. Utilizar um arremedo de conceito – já que não é claro, na maioria das vezes, nem para quem o emprega -, não resolve o problema.
Tudo isso sem falar do problema hermenêutico de quem crê incensar o papa Bento XVI sem ter lido uma linha dos "modernistas" (quase "leprosos") von Balthasar e de Lubac, cujos pensamentos são praticamente condições de possibilidade do entendimento de sua teologia. É sempre lamentável.
Por fim, prezado Angueth, perdoe-me se meu comentário soa mal educado ou irritadiço. Mas é que de fato me assusta ver que, por aí, se esconde ignorância com aquele desprezo intelectual que só vem dos que nem entenderam o problema.
Grande abraço.
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Prezados.
Prometi a mim mesmo que não iria comentar mais neste post, mas a resposta do Gederson, que me pareceu bastante séria e que instiga à conversa, me fez mudar de ideia.
Infelizmente, não é possível tratar aqui de todos os pontos aventados por você Gederson. Vou me ater àquele que penso ser central e, como adendo, citarei, ao final, um trecho do livro que indiquei. Devo notar que não tenho procuração para defender Balthasar e nem é meu intento. Apenas penso, como disse em minha resposta anterior, que ele é, como tantos outros, quando não-lido, mal-lido.
1. Sobre o estatuto da Teologia de Balthasar:
O termo que você utiliza, e que por vezes é utilizado a fim de fazer referência à “Nouvelle Theologie”, “antropoteologia”, se origina, penso eu, de uma dupla má compreensão filosófica:
1.1. Não consigo compreender o sentido último deste termo. Se “antropoteologia” significa, como você diz Gederson, “uma leitura das Sagradas Escrituras e da história da salvação em chave estética” e, por “estético” você compreende algo “vazio” e contrário à “ética, política, escatologia…”, há um problema sério de compreensão do termo “estético” (que faz com que você o associe a Nietzsche!!!) que, por sua vez, impede a correta compreensão do que diz Balthasar. As pessoas que têm tal compreensão do termo “estética” desconhecem a tradição filosófica: o Belo e o Bem são um e o mesmo desde Platão, o que culmina, mesmo em Kant – um diluidor – na unidade entre ética e estética. Não se pode fazer confusão com o sentido de “estético” próprio ao Romantismo alemão desfigurado, que tornou-se para nós algo como a práxis de um dândi.
Balthasar utiliza o termo “estético” num sentido muito próximo ao sentido grego de “aísthesis”, ou sensação. As “aístheta”, ou os dados sensíveis se dão a partir dos “phainomena”, das “coisas que aparecem”. Com isso, Balthasar quer dizer que sua teologia se inicia a partir do fato bruto que Deus se manifesta. Mas não acredite em mim. Veja o que diz o próprio Balthasar:
Desse modo, pode-se construir, sobretudo uma teologia aesthetique (Gloria): Deus aparece. Ele aparece para Abraão, para Moisés, para Isaías e, finalmente, em Jesus Cristo. Uma questão teológica: como nós distinguimos sua aparição, sua epifania dentre centenas de outros fenômenos no mundo? Como nós distinguimos o verdadeiro e único Deus vivo de Israel dos ídolos que o cercam e de todas as tentativas filosóficas e teológicas de alcançá-lo? Como nós percebemos a incomparável gloria de Deus na vida, na Cruz, na Ressurreição de Cristo, a glória diferente de toda a glória deste mundo? [Balthasar, Communio, inverno de 1998]
Não há portanto um estetismo. Não há experiência estética subjetiva. Parte-se de uma das verdades mais cabais do judaísmo e do cristianismo, a saber, que Yaweh é um Deus que se dá a conhecer, se manifesta, se mostra.
Este aspecto nos leva a um segundo aspecto da falta de sentido absoluto do termo “antropoteologia”.
1.2. Simplesmente não é possível uma teologia que não passe pelo “ánthropos” (homem). Nem os arroubos de êxtase, no qual há uma espécie de “visão direta”, dos maiores místicos, se são narrados, escritos, contados, escapam à presença do homem, já que tornam-se conhecidos a partir dele, passam por seu “lógos”. Desse modo, é absolutamente impossível uma teologia que não seja, de certo modo, “antropoteologia”. Como dizia, esse vocábulo é, ele sim, vazio de sentido como crítica.
Parece haver um desconhecimento profundo, por parte de quem empreende este tipo de crítica, de uma divisão metodológica que já está em Aristóteles e da qual o próprio São Tomás é legatário: o conhecimento a partir daquilo que é “primeiro para nós” (próteron prós hemãs) e aquilo que é “primeiro por natureza”(próteron prós physei). É o que subjaz à asserção de S. Tomás quando nega a possibilidade de conhecimento “evidente” (analítico, diríamos hoje) da existência de Deus. Por isso, devemos partir daquilo que está mais próximo de nós, a criação. Veja-se também em “O ente e a essência” do mesmo S. Tomás a admoestação para que partamos daquilo que nos é mais fácil de ser conhecido a fim de, posteriormente, chegar àquilo que nos está mais distante (muito embora seja o primeiro “por natureza”, ou na ordem da realidade).
O que faz Balthasar em sua “Estética” é tão somente partir daquilo que “é primeiro para nós”, do modo como Deus se manifesta. Prova disso é o que diz o próprio Balthasar sobre o movimento epistemológico no sentido inverso, que ocupa outra parte de sua obra, e parte agora do dado revelado como que “de cima para baixo”. Mais uma vez, é Balthasar quem o diz:
Pode-se terminar com uma logique (uma teo-lógica) [assim como iniciamos com uma estética]. Como Deus pode fazer a si mesmo compreensível ao homem, como pode a Palavra infinita expressar a si mesma em um mundo finito sem perder seu sentido? Este é o problema das duas naturezas de Jesus Cristo. E como o espírito limitado do homem pode apreender o sentido ilimitado da Palavra de Deus? Este é o problema do Espírito Santo. [Balthasar, Communio, inverno de 1998]
Agora, o mais importante de tudo isso: é impressionante que seja necessária uma justificativa metodológica que chegue no fulcro da atividade epistêmica a fim de debelar um preconceito bobo proveniente, geralmente, daqueles que nutrem uma profunda aversão a livros e que despedem obras sem as ler. Como já disse no comentário anterior, teses escandalosas estão presentes nos grandes doutores (quer pior do que as bobagens de um genial Duns Scotus?). Mas não é intelectualmente honesto ignorar em bloco um pensamento ignorando que possa haver grandiosas qualidades ali, tão somente por fazerem parte de tal bloco. Apenas pra continuar no exemplo, embora Duns Scotus inclua Deus e as criaturas no mesmo gênero, não é ele fundamental para a compreensão da Imaculada Conceição?
Por fim, termino minha participação por aqui com uma citação do livro a que fiz referência. O texto é bem indicativo sobre Balthasar ter pensado ao largo do magistério da Igreja, como diz Gederson:
Why write this book? The intention is to show that there is a deep-seated anti-Roman attitude within the Catholic Church. (…)
The transfer of Christ’s pastoral ministry to Peter cannot be expurgated from the Gospel, without prejudice, of course, to the ministerial power derived from Christ that belonged to the other apostles and to their sucessors in the episcopate. (…) This authority cannot be called into question by any sort of ‘democratizing’ supplementary structures but at most can be relegated to the shadows through obliviousness or conniving on the part of confused or cowardly Catholics. These powers are not done away with thereby, nor can they be replaced by a primacy of honor, however cleverly devised, or by a democratically acknowledged presidency.
Em Cristo.
G.