Em maio deste ano, tive o prazer de ser convidado pelo Dionisius Amendola, que capitaneia um canal incrível no youtube (há intermináveis horas de excelente conteúdo no Bunker, não deixe de assistir e de apoiar), para responder a algumas perguntas sobre filosofia. Essa entrevista fez parte do conteúdo exclusivo para apoiadores naquele mês. Agora, com a permissão do Dio, posto aqui. Talvez seja útil para aqueles que têm interesse por filosofia. Diga aí nos comentários se foi proveitoso para você e boa leitura.
BD – Existe uma ‘vocação ao filosofar’?
GF – Se por “vocação” você entende um chamamento divino a uma determinada compreensão e prática da vida humana, não sei, sinceramente, responder. O que me parece evidente é que há pessoas que se inclinam mais à atividade intelectual, dão-se bem ao pensar abstratamente e ao manejar conceitos como soluções de problemas igualmente teoréticos etc. Parece-me claro, e falo agora como professor, que há pessoas que têm essas habilidades mais ou menos inatas. Mas é igualmente evidente que, uma vez que as questões filosóficas são todas questões que dizem respeito ao ser humano, todos podem ganhar com a reflexão sobre elas. Neste sentido, a filosofia é um empreendimento profundamente protagórico, isto é, tem as inquietações e questionamentos humanos como medidas de todas as coisas.
BD – O que distingue o diletante do saber do filósofo profissional (se é que existe esse)?
GF – Essa questão é interessante e importante porque, antes de tudo, ela geralmente sofre de um efeito sanfona curioso: o conceito principal – o de “filósofo profissional” – é, por vezes, enormemente inflado ou radicalmente esvaziado. Com isso quero dizer que a ideia de “filósofo profissional” é, em algumas formulações ou entendimentos dessa expressão, identificada àquela de “filósofo”, ou seja, só poderia ser chamado de filósofo quem satisfizesse alguns critérios que pensamos ser os que o filósofo profissional tem. E aqui respondo sua pergunta entre parênteses: o conceito de filósofo profissional é perfeitamente plausível. Assim como há quem jogue futebol por simples prazer ou quem tem a marcenaria como hobby, há o atleta profissional e o marceneiro profissional. Não vejo razão alguma para que não possamos aplicar os mesmos critérios ao filósofo profissional, isto é, ele pratica tal ação profissionalmente, retira seu sustento de tal atividade, faz parte de uma comunidade com a qual compartilha certos elementos, como reconhecimento mútuo, certos privilégios e certos deveres e, principalmente, tem de prestar contas da qualidade de seu trabalho perante o público geral ou, ao menos, àquela mesma comunidade. No caso do filósofo profissional isso significa – e isso é assim, praticamente, no mundo inteiro – estar ligado a uma universidade, lecionar, pesquisar, publicar, debater, ir a congressos e encontros, mas também posicionar-se quanto a seus temas de interesse frente ao público. Alguém que quisesse ser considerado um “filósofo profissional” e não tomasse parte nessas atividades e nesses compromissos sociais que apontei seria tão ridículo quanto um jogador de fim de semana que pretendesse ser considerado um profissional. Some-se a isso a ingênua ideia de que filosofia deve ser a atividade do homem cujo saber deve ser, obrigatoriamente, edificante para si e para os outros. Em geral essa visão ganha eco nas bocas de gente com pouca aptidão intelectual e uma dose razoável de ressentimento ao topar com filósofos claramente mais intelectualmente sofisticados, que o tipo ressentido não consegue acompanhar e que, portanto, só consegue criticá-lo por sua pretensa falta de caráter, involução espiritual ou ausência de moralidade. Qualquer pessoa minimamente racional sabe que é plenamente possível ser tecnicamente muito bom em uma área e moralmente reprovável. Não há razão alguma para pensar que na filosofia deva ser diferente.
No entanto, é evidente que não é possível concordar com aquela “inflação” da noção de “filósofo profissional” que pretende identificá-la à noção de “filósofo” pura e simplesmente. A profissionalização da filosofia tem uma história muito mais recente do que a da filosofia ela mesma e, assim como o atleta de domingo pode tranquilamente ser melhor do que muitos profissionais, um diletante pode ser muito melhor do que um filósofo profissional. Contudo, essa percepção quase óbvia leva, muito frequentemente, ao segundo fenômeno que acomete aquela noção, isto é, à visão totalmente deflacionária de “filósofo profissional” a ponto de que ela não signifique mais nada, o que é igualmente falso.
Alguém que seja um excelente diletante simplesmente não tem de lidar com inúmeros compromissos – práticos, mas também intelectuais – que são imperativos para um filósofo profissional. Fazer filosofia, assim como fazer ciência, pode ser entendido como tomar parte em uma conversa. Mas há diferentes papeis em uma conversa. Você pode ser apenas um ouvinte, ainda que muito aplicado, ou, ainda, um participante ativo, mas secundário, que expressa suas impressões de maneira descompromissada, e há a possibilidade de ser um dos interlocutores principais. Novamente, o papel que se vai desempenhar não tem necessariamente a ver com a (boa) qualidade da participação. O interlocutor principal pode estar redondamente enganado, mas é ele que, por uma série de fatores – que são o conjunto daqueles compromissos intelectuais e práticos –, está sendo ouvido em primeiro lugar, respondido, considerado, refutado, analisado etc. Filósofos profissionais são aqueles que adquirem os traços necessários para se candidatarem a um dos postos de interlocutor principal. Quais sejam esses traços, obviamente, é algo que muda ao longo da história e, embora eu tenha dito que a figura do filósofo profissional seja recente, ter de satisfazer determinados critérios é algo que já encontramos claramente na idade média e seria ridículo pensar que São Tomás de Aquino, que chama Aristóteles de “O Filósofo”, respeitaria como “filósofo” algum contemporâneo que não fosse capaz de oferecer bons comentários às “Sentenças”, de Pedro Lombardo.
Dito tudo isso, um último comentário em relação ao ponto mais específico da sua questão. Você pergunta sobre a eventual diferença entre o “saber” do diletante e do profissional. Uma vez mais, como em qualquer atividade – do jogador de futebol ao músico – é evidente que o amador pode ser tão bom ou melhor do que sua contraparte profissional. Mas, como em todas elas, a mim soa um tanto infantil – para não falar novamente em ressentimento – querer sustentar que não há nenhum ganho, no caso em questão, intelectual, no exercício profissional de uma atividade. Parece-me claro que um filósofo profissional, que deve lecionar, estar atualizado quanto à bibliografia referente a seus temas de trabalho – o que significa, inclusive, ler, por vezes, mesmo sem prazer –, expor e sustentar seus pensamentos reiteradas vezes em encontros com outros profissionais e esforçar-se continuamente por fortalecer suas posições e argumentos, alcance resultados melhores do que o amador.
BD – Qual o papel do filósofo na sociedade contemporânea? Em especial no Brasil.
GF – Talvez nesta pergunta se aplique melhor o que vai entre parênteses na questão anterior; qual o papel do filósofo na sociedade contemporânea (se é que ele existe). Embora eu obviamente esteja fazendo um gracejo, há um fundo de verdade na suspeita sobre o papel do filósofo em qualquer sociedade. Isso porque, em certos casos, como no da sociedade contemporânea, a importância do filósofo e da filosofia sejam inversamente proporcionais ao reconhecimento social dessa importância, isto é, sob certo aspecto, a filosofia e o filósofo são mais necessários precisamente quando se pensa que eles são mais dispensáveis.
Em geral, a resposta a essa pergunta vem acompanhada de uma defesa apaixonada da importância da filosofia baseada em seus subprodutos. Essa é a posição expressa, por exemplo, pela filósofa norte-americana Martha Nussbaum, em seu já clássico “Not for profit”. O subtítulo do livro já antecipa a tese principal: “Why democracy needs philosophy”, isto é, a filosofia seria necessária porque ela seria fundamental para a manutenção da democracia. Já no Brasil, temos a versão do argumento baseada no famigerado “pensamento crítico”, que seria um subproduto da filosofia. Esse caminho de resposta a sua pergunta tem ao menos dois problemas. O primeiro é que faz a importância e a contribuição da filosofia residirem em habilidades e competências – l como os pedagogos gostam de falar hoje em dia – que são, justamente, subprodutos da atividade filosófica e, inclusive, independentes dela. Se é verdade que alguém treinado na atividade de reflexão filosófica tem uma maior inclinação a desenvolver raciocínio lógico mais apurado, habilidades discursivas e analíticas e uma tendência a sopesar argumentos de maneira mais objetiva, é igualmente evidente que o estudo da filosofia não é condição necessária nem suficiente para o desenvolvimento de tais características. Um treino que enfocasse esses resultados seria tanto ou melhor sucedido quanto um estudo rigoroso de filosofia. Assim, penso que argumentar por essa via é um erro.
O outro erro, agora mais grave, é fazer o valor e a importância da filosofia para a sociedade dependerem de fatores extrínsecos à própria atividade filosófica, isto é, da democracia, do respeito às diferenças, da civilidade etc. Ora, a consequência óbvia é que, basta que tais fatores exteriores deixem de ser desejados, a filosofia seria descartável. Se, em dada sociedade, a democracia não for mais tida como valiosa em si, a filosofia não teria mais nada a dizer que fosse digno de nota.
Tendo limpado o terreno das respostas que acho inadequadas, vamos à parte positiva. Penso que há dois aspectos a serem considerados na avaliação da importância da filosofia e do filósofo em qualquer sociedade e, especialmente, em uma dada sociedade específica, como a contemporânea. Há, a meu ver, necessariamente uma dimensão geral e universal, que advém da própria natureza da filosofia, e outra contingente, que depende das vicissitudes de cada época. A título de exemplo, em sociedades fundamentalmente utilitaristas e tecnocráticas ou avessas a decisões e perspectivas que tenham uma visão mais holística do ser humano, a importância da filosofia seria fornecer uma crítica dos pressupostos e uma avaliação das finalidades mais gerais. Note que este caso não incorre no erro que comentei acima, a saber, o da identificação da filosofia com seus subprodutos, uma vez que a reflexão analítica sobre princípios, pressupostos e finalidades é um dos traços distintivos da atividade filosófica. Novamente, as contribuições pontuais que a filosofia poderia oferecer a sociedades determinadas variam de acordo com suas conformações.
Assim, a pergunta pode ser reformulada como “qual a contribuição que a filosofia pode oferecer à comunidade humana?”.
No entanto, creio haver uma dimensão mais profunda e universal na qual a pergunta pela contribuição da filosofia à sociedade signifique questionar qual o valor da atividade filosófica para a comunidade humana que, para além de determinações espaço-temporais, compartilha certos traços comuns. Vista sob esse prisma, a indagação sobre a contribuição da filosofia para uma dada sociedade – como a nossa, por exemplo – é apenas a pergunta por um caso singular no interior de um conjunto universal. Assim, a pergunta pode ser reformulada como “qual a contribuição que a filosofia pode oferecer à comunidade humana?”. Como disse, então, o primeiro passo deve ser o de afastar-se dos caracteres distintivos desta ou daquela sociedade e mirar naqueles que dizem respeito ao ser humano tomado em si mesmo, sem nenhuma outra determinação, para parafrasear o início da “Ciência da Lógica”, de Hegel.
Como se vê, a própria colocação dessa pergunta – mesmo que a resposta seja negativa, isto é, não há algo como “o ser humano universal” – é já um exercício de atividade filosófica. Este é um dos casos do paradigmático paradoxo do “Protréptico”, de Aristóteles: o esforço para provar a inutilidade da filosofia já é, ele mesmo, um esforço filosófico. Mas indo além disso, é possível pensar que há certos elementos fundamentais para o que já os gregos entendiam sob o termo “Acmé”, isto é, o pleno florescimento humano que consiste na realização completa das características universais, mas também sob suas expressões individuais, humanas. Não parece ser defensável que uma vida humana plenamente desenvolvida possa prescindir do bom uso da razão – ainda que nem todos a utilizarão para finalidades profissionais –, assim como da consideração e análise dos princípios que regem nossas crenças e ações, das finalidades destas e do modo como nós, através de nossos pensamentos e atitudes, nos relacionamos com os outros. Também não parece ser defensável que uma vida inteiramente humana ignore totalmente questões sobre a felicidade, o amor, o belo e a verdade, nem que essas estejam somente a serviço de fins de menor envergadura na medida em que se apresentam questões pontuais na vida de cada um de nós. Assim sendo, há, portanto, uma contribuição perene que a filosofia pode oferecer à sociedade humana porque ela é uma pulsão que emana do mesmo cerne, do mesmo núcleo, que todas as manifestações genuinamente humanas que merecem esse nome.
BD – Existe uma diferença entre ensinar filosofia e filosofar?
GF – Em geral, essa questão tem como pano de fundo uma distinção que, usualmente, retraçamos a Kant, cuja asserção na “Crítica da Razão Pura” é a de que, com exceção da Matemática, não é possível aprender nenhuma das ciências racionais – isto é, a priori – e, especialmente, a filosofia, mas apenas aprender a filosofar. A leitura padrão dessa afirmação é a de que Kant estaria diferenciando filosofia como conteúdo, ou mesmo história da filosofia, do ato de filosofar. No entanto, esse entendimento da distinção é apenas parcialmente correto ou, antes, corresponde apenas parcialmente à intenção de Kant. Digo isso porque, sobretudo para certa interpretação da aparente separação radical entre as tradições hermenêutico-fenomenológica e analítica no final do século XIX e começo do XX, a filosofia seria um empreendimento completamente não-histórico ou, melhor dizendo, a história da filosofia pouco ou nada teria a ver com a filosofia em si. Vemos traços dessa concepção também em parte da crítica ingênua da produção da academia brasileira que não formaria filósofos porque se dedicaria apenas à história da filosofia. No entanto, o que Kant entende pela distinção entre “aprender filosofia” e “aprender a filosofar” fica mais claro quando olhamos para suas anotações programáticas sobre os cursos que ministraria no semestre de inverno de 1765-1766. Ali, Kant afirma ser impossível ensinar filosofia porque simplesmente não é possível ensinar um corpo de doutrinas que se pretenda absolutamente verdadeiro, definitivo e inquestionável. Desse modo, o que é possível, e que está plenamente de acordo com o programa da Aufklärung, do qual Kant é um dos paladinos, é fomentar o uso da razão crítica, o que em sentido kantiano significa questionar, inclusive, o escopo e o raio de ação da própria razão. Portanto, nesse sentido, essa distinção entre “ensinar filosofia” e “ensinar a filosofar” pode ser defensável. Contudo, uma vez mais, isso não me parece ser toda a história.
Se levarmos em conta que a filosofia é uma atividade da racionalidade humana a partir de problemas e que tanto tais problemas quanto seus desdobramentos – clarificações, objeções e respostas – são fundamentalmente históricos, não creio ser possível filosofar de maneira totalmente proveitosa sem conhecer o que, grosso modo, poderíamos chamar de estado da questão de um problema, o que envolve, em qualquer sentido que se queira dar, o conhecimento prévio do que se fez até então e, portanto, envolve conhecer e ensinar “filosofia”, entendida agora como o corpo mais ou menos orgânico dos desdobramentos de problemas filosóficos que são, em si mesmos, históricos. Assim, acho virtualmente impossível “ensinar a filosofar” de maneira realmente proveitosa sem certa apropriação do que outros fizeram de relevante e cuja cristalização poderíamos chamar “a filosofia”. Como se pode ver, não significa identificar “filosofia” e “história da filosofia”, mas sim de compreender que todo tratamento acerca de problemas filosóficos pretende estabelecer uma comunicação a outros interessados nesses mesmos problemas e, portanto, pretende estabelecer uma comunicação para com os que nos precederam, assim como com aqueles que nos sucederão. Não raramente, então, volta-se a perspectivas passadas sobre um dado problema justamente porque, após uma série de desdobramentos, percebe-se que elas se mostram novamente relevantes.
Sinto que devo acrescentar mais uma palavra aos eventuais analíticos que venham a ler essa resposta: por mais que esses se pretendam independentes da história – ainda que, ironicamente, hoje haja até periódicos científicos inteiramente dedicados à história da filosofia analítica -, debruçar-se sobre um artigo do último número da Philosophical Reviewou da Mindainda é lidar com a história da filosofia; apenas é a mais recente.
BD – Existe um ‘caminho de estudos’ para a filosofia?
GF – Se por “caminho de estudos” você entende um percurso único ou rígido para vir a exercer a atividade filosófica de uma maneira satisfatória, acredito que não. Do que estou cada vez mais convencido, como professor que já lecionou para pré-primário, ensino fundamental, médio, cursinho pré-vestibular, graduação e pós-graduação, é que há, de fato, uma abordagem, uma perspectiva da qual não se pode furtar, a saber, a consciência fixa e incontornável de que o elemento primordial da filosofia é o problema. E não é possível superestimar a importância disso para um bom “caminho de estudos”. O quão fundamental é a compreensão disso espraia-se por uma infinidade de caminhos que não é possível perseguir aqui. Contudo, vou explicitar apenas dois que mostram como ela pode ser fundamental para evitar dois erros ou dificuldades que são muito recorrentes.
Um primeiro obstáculo, cuja causa evidente é a ignorância sobre o fato de que a filosofia trata de problemas, é o que costumo chamar de “suspeita epistemológica” sobre a filosofia.
Um primeiro obstáculo, cuja causa evidente é a ignorância sobre o fato de que a filosofia trata de problemas, é o que costumo chamar de “suspeita epistemológica” sobre a filosofia. Por “suspeita epistemológica” refiro-me ao sentimento – porque é, fundamentalmente, um sentimento mesmo ou, no máximo uma intuição, um conhecimento vago – de que a filosofia não somente não é interessante “para mim”, mas que ela não é intelectualmente interessante de modo algum. Costumo desenhar o seguinte experimento mental para alguns alunos que não são da área da filosofia, na primeira aula.
Imagine que, por azar, você, um aluno de psicologia ou direito, entre numa sala errada na qual está acontecendo uma aula de Cálculo. Quão grande seria o seu susto quando o professor começasse a explicar cálculo diferencial e integral, limite de funções etc. Você certamente esperaria por uma oportunidade para sair da sala sem ser notado e, como costuma acontecer com alunos que tiveram péssimas aulas de matemática no colégio e descobriram suas reais vocações para psicologia ou direito, fugisse do que considera ser uma coisa horrenda. Se você fosse questionado, no momento em que sai da sala, sobre como se sente, você até poderia dizer coisas horríveis sobre a experiência tenebrosa de ser submetido a 15 minutos de cálculo. No entanto, mesmo aí, se você fosse questionado sobre se pensa que cálculo é uma bobagem, dificilmente responderia que sim. Ocorre que, neste caso, embora você possa odiar cálculo com todas as suas forças, você dificilmente tem uma “suspeita epistemológica” sobre cálculo. Em geral, e mesmo sem saber exatamente como, você intui que se alguém está prestes a construir um prédio ou uma ponte, de alguma maneira “mágica” é importante que esse sujeito saiba algo de cálculo. Dito de outro modo, você percebe que não pode passar do “não quero estudar isso” ou do “isso não é interessante para mim” para o “ninguém deveria estudar isso” ou para o “isso não é interessante para ninguém”. Obviamente, nós poderíamos inverter o exemplo e imaginar um aluno da engenharia entrando numa aula de semiologia, na medicina, ou, ainda, de psicologia da criança. Mas, em geral, quando se trata de filosofia, aquela passagem – que é o fruto da suspeita epistemológica – é tranquilamente feita: por que diabos, afinal, alguém estuda isso?
Pois bem, a minha explicação para o fenômeno da suspeita epistemológica em relação à filosofia é que, diferentemente do que acontece no meu experimento mental, as pessoas não reconhecem facilmente que a filosofia lida, assim como todas as outras áreas do saber, com problemas. Nos casos acima, intui-se que aqueles conhecimentos entram, ainda que não se saiba como, no tratamento ou resolução de problemas. E isso ocorre de maneira mais ou menos fácil porque os problemas da engenharia ou da medicina são mais ou menos evidentes. Mas como dizia Hegel, infelizmente a filosofia não goza do fato de que, como outras ciências, seus problemas sejam mais ou menos claros e perceptíveis. A compreensão da própria existência de problemas filosóficos já demanda reflexão filosófica. Assim, um dos principais obstáculos à atividade filosófica vem da falta de “calibragem” mental para enxergamos que tais problemas existem.
O segundo ponto é que, uma vez superada a suspeita epistemológica, o entendimento do que os filósofos dizem é outra dificuldade quase que imediata. Mesmo para alguém disposto a filosofar, a compreensão da dinâmica da filosofia, bem como daquilo que podemos chamar de posições ou teses filosóficas, não é algo simples. Isso acontece, uma vez mais, porque na imensa maioria das vezes não estamos lendo o que os filósofos dizem ou escrevem em seus livros ou artigos como tentativas de lidar com problemas que para eles são bem definidos. Claro está que, em parte, a culpa disso é que filósofos, sobretudo os mais antigos, não têm a preocupação de clarificar qual é ou quais são tais problemas. Contudo, isso ocorre porque tais autores estão escrevendo no interior de um contexto e para uma comunidade que já está familiarizada com este ou aquele debate, o que não é o seu caso quando lê um livro 50, 300, 1000 ou 2000 anos depois dele ter sido concebido. Mas basta que, com ajuda de outras obras, estudiosos ou professores, você compreenda o problema (ou os problemas), o que você lê passa a ser encarado como uma tentativa de clarificar, esvaziar ou responder tal problema. E é precisamente nessa mudança de perspectiva que está a diferença entre meramente saber o que os filósofos dizem e compreender filosofia. É, também, a partir deste ponto que alguém se torna capaz inclusive de filosofar por conta própria, na medida em que só a partir do entendimento dessa dinâmica é que é possível avaliar se tal resposta é satisfatória, se tal argumento é correto, se tal perspectiva é válida e assim por diante. Caso contrário, filosofia passa a ser idêntica à erudição, isto é, saber o que outros disseram, e que pode ser até fundamental, mas não é suficiente. Para além de entender e por em marcha essa dinâmica, não consigo conceber nenhum caminho satisfatório para a filosofia.
BD – Quais os livros e autores inescapáveis para quem quer realmente conhecer a filosofia?
GF – Embora eu próprio seja crítico de uma parte do que podemos entender por cânone da filosofia (ocidental, se é que há tal qualificativo), parece-me inescapável conhecer aqueles que são justamente os livros e autores fundamentais de tal rol. Não é possível ganhar um conhecimento mínimo do desenvolvimento e do estado da questão dos problemas mais recorrentes da filosofia sem passar por Platão, Aristóteles, Santo Tomás, Descartes, Locke, Hume, Kant, Hegel, Frege, Husserl, Marx, Nietzsche, Russell, Heidegger, Wittgenstein e, avançando no século XX e XXI, Carnap, Popper, Kuhn, Quine, Putnam, Lewis, Armstrong, Sider e a lista segue. No entanto, de um ponto de vista mais específico, e tendo em mente o que disse na resposta anterior sobre o problema ser o momento central da filosofia, esse mesmo cânone pode e deve ser revisto, reordenado e, por vezes, profundamente modificado. E essa tarefa de retrabalhar o cânone é uma das tarefas fundamentais que a filosofia tem para com sua própria natureza e história. De acordo com os diversos interesses por problemas distintos, algo pode surgir como realmente “mais inescapável” do que no percurso no qual se persegue o estado da questão de outro problema. Para alguém interessado em problemas de filosofia política, uma parte do cânone que apontei acima pode ser dispensado em favor de outros autores e obras. No entanto, é importante perceber que, não raro, mesmo obras e autores aparentemente distantes dos grandes nomes são profundamente devedores destes e exumar essas conexões não somente não é acessório ao estudo sério, como é uma das missões primordiais. Se você pretende ler a filosofia política do XX, que tem no neocontratualismo de Rawls um de seus centros gravitacionais, é imperativo que você se debruce sobre Kant, caso contrário o núcleo das respostas e opções de Rawls permanecerá na sombra. Por outro lado, tal processo de compreensão mais aprofundada pode fazer com que filósofos que nem sequer apareçam na imensa maioria de listas e histórias da filosofia retornem como peças absolutamente essenciais no quadro de um problema. É o caso, por exemplo, de Lotze que, após Hans Sluga ter demonstrado sua importância para as soluções de Frege, virou objeto de atenção, ainda que continue um perfeito desconhecido do grande público. Assim, o que quero dizer é que, num primeiro momento, é preciso conhecer e compreender o básico dos problemas filosóficos mais essenciais e os pontos nos quais o tratamento de tais problemas foi radicalmente modificado. Esses grandes pontos geralmente coincidem com os grandes nomes e suas grandes obras. Contudo, num segundo momento, interesses e níveis de aprofundamento mais específicos usualmente levam à reavaliação, inclusive, desses grandes pontos.
Mais uma vez lendo essa ótima entrevista, que sumariza várias chaves para uma boa compreensão da jornada reflexiva que a existência exige de nós.