A cruz
Essa proibição cospe na cara de 2.000 anos de história de uma grande parte da humanidade
ANOS ATRÁS, em Paris, o historiador Jacques Le Goff me falava da sua preocupação com o destino da cultura ocidental. Para ele, o Ocidente poderia perder sua identidade como resultado de sua própria produção cultural.
Outros intelectuais também partilhariam de suas inquietações. Entre eles, o antropólogo Lévi-Strauss, morto semana passada. Le Goff se inquietava porque parte das agonias da cultura ocidental teria sido fruto dos "achados" da história e da antropologia e seus frutos, as filosofias e políticas relativistas do século 20.
O relativismo existe desde os sofistas gregos e tem em Protágoras seu ícone máximo de então. Mas o que é "relativismo"? Em Protágoras é: "O homem é a medida de todas as coisas" (versão curta). Isto quer dizer que tudo é criação humana: a moral, a religião, enfim, as verdades de cada cultura. Sentados num bar, diríamos: "Cada um é cada um".
A história contemporânea acentuou essa versão das coisas quando afirmou que as épocas têm suas concepções de mundo específicas e que não podemos dizer que uma época seja melhor do que a outra. A antropologia, por sua vez (e aqui entra Lévi-Strauss), afirmou que as culturas não podem ser comparadas umas com as outras sem cometermos o pecado de não percebermos que cada cultura seria um sistema fechado em si mesmo, onde um comportamento só poderia ser julgado pelos valores morais da própria cultura.
Por exemplo, matar bebês pode ser um horror moral acima do equador e uma obrigação sublime abaixo do equador. É comum remeter a Lévi-Strauss a descoberta da "dignidade intrínseca" de cada cultura, e que não se deve julgar uma cultura usando valores de outras.
Não há dúvida que essa atitude é essencial para a antropologia. O problema começaria quando pensamos no impacto do relativismo no próprio Ocidente que o inventou. Dito de outra forma: o relativismo se transformou numa militância política e moral apenas no Ocidente. Enquanto os ocidentais estariam sofrendo de uma "indigestão" devido à assimilação do relativismo, as "outras" culturas, estudadas pelos próprios ocidentais, permaneceriam no seu repouso não contaminado pelo relativismo. Trocando em miúdos: muçulmanos podem permanecer acreditando em seu paraíso com virgens, índios em seus espíritos da floresta, enfim, apenas os ocidentais deveriam "relativizar" seu Deus e suas "verdades".
Sendo os cientistas sociais, os filósofos, os professores e os jornalistas maciçamente ocidentais, seriam as crianças deles que deveriam ser educadas duvidando da validade universal de seu mundo. Aí entra a inquietação de Le Goff: o Ocidente poderia se dissolver como identidade à medida que relativizaria a si mesmo, enquanto as "outras" culturas seriam poupadas da crítica relativista, porque indiferentes à angústia relativista ocidental e, também, porque contam com a simpatia do Ocidente nessa indiferença e na defesa de sua "dignidade intrínseca".
A verdade é que os homens são sempre contraditórios e, ainda que eu não saiba se Lévi-Strauss de fato partilhava da mesma angustia de Le Goff, algumas pessoas afirmam que ele admirava seu avô Rabino e que julgava os racionalistas ateus uns chatos e preferiria aqueles que acreditam em Deus. Pode ser boato, mas isso faria dele um homem mais interessante do que alguns que engoliram o relativismo assim como quem come pão e vai ao circo.
Um exemplo da "indigestão" causada pelo relativismo no Ocidente é o recente caso dos crucifixos nas escolas italianas. Aparentemente uma mãe se queixou de que o filho se sentia "desrespeitado" porque, não sendo cristão, tinha que frequentar uma sala de aula com uma cruz na parede. A partir daí, teriam decidido pela proibição do crucifixo nas escolas.
Essa decisão é ridícula porque a cruz é um símbolo, seja eu cristão ou não, das raízes do próprio Ocidente, naquilo que ele mais preza: amor ao próximo, generosidade e justiça, enfim, um Deus que morre de amor. Nós contemporâneos somos ignorantes de um modo gritante acerca do cristianismo, confundindo-o com alguns de seus momentos mais infelizes e cruéis (toda cultura é infeliz e cruel de alguma forma). Essa proibição cospe na cara de 2.000 anos de história de uma grande parte da humanidade, e os ignorantes que a realizaram deveriam ser obrigados a pedir desculpa aos cristãos.
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É a velha cultura das massas. Aqueles que sabem da importância que a tradição possui na formação de uma identidade e consequente desenvolvimento da cultura de uma nação, esses não caem nesse papo “esclarecido”. Mas quanto são? É muito mais fácil convencer as massas de que um estado leigo significa o abandono de qualquer apoio religioso. Como dar um passo adiante neste diálogo entre uma minoria mais sensata e tímida e uma maioria insandecida e aos berros? Acho que voltamos ao problema da catequese… Mas será suficiente? Ah, claro… rezar também ajuda.
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O ponto de vista de Pondé é simplista, relativo e acima de tudo ARROGANTE!!! Prefiro indicar o texto de Hélio Schwartsman da coluna da folha on line intitulado “Crucifixos na berlinda”. (não sou judeu, nem protestante)
Prezado Paulo
Gostei muito do seu comentário e da proposição de outro texto sobre o assunto. É, de fato, assim que se faz uma conversa.
Li o artigo de Schwartsman. Sinceramente, é ele que me pareceu simplista ao extremo. A começar porque não consegue vislumbrar um terceiro agumento (como o do Pondé, por exemplo, de matriz histórico-cultural) para se defender a presença do crucifixo. Muito menos a crítica aguda que Pondé elabora sobre a condescendência relativista para com os “outros” da cultura e a absoluta intolerância ao posicionamento da Igreja, por exemplo. É Schwartsman que peca pela falta de refinamento.
Tal ausência de refinamento se dá também nas análises que faz dos argumentos. Nem passa pela cabeça dele uma análise do Cristo como a de René Girard, por exemplo, que o trata a partir do desejo mimético de violência e da dinâmica do sacrifício apaziguador. Falta-lhe complexidade e matizes na sua posição.
Nem comento sobre o que ele chama de “esquizofrenia” da Igreja em relação ao seu posicionamento sobre o diálogo inter-religioso. Ele, como na maioria de seus textos, está a kilômetros de distância de um debate à altura dos que pretende entabular.
Um abraço.
Caro G. Ferreira,
Primeiramente queria lhe dizer que nada mais saudável que a dialética. Porém é preciso que esclareça alguns pontos: quando fiz a recomendação do texto do Hélio não quis fazer uma análise mais profunda do seu pensamento, apenas quis, postular o contraditório, pois me pareceu, que ao concluir seu parecer, Pondé falha, exatamente por ter a pretensão de fazer aquilo que Bourdier chama de ‘violência simbólica’, ou seja a inculcação de valores sócios-culturais que tem a função de legitimar, naturalizar, e fazer sua reprodução.
Penso que criar modelos a serem seguidos é algo altamente destrutivo para a história e somente através da diluição dos objetos pré-determinados, desconstruiremos os monopólios discursivos.
Partindo do pressusposto que a verdade histórica é um conjunto de interpretações, e que forma o discurso competente e que esse discurso forma um ‘espaço relacional interpessoal’, como diz Foucault, iremos chegar a uma conclusão que a relação saber/poder provoca um efeito que remete no próprio individuo.
Não quero entrar no mérito da dicussão, no que se refere ao cristianismo,contudo é importante citar que: a prática discursiva é o dispositivo disciplinar da sociedade; as ações humanas estão cristalizadas na naturalização; o homem é simbólico; o que consolida a mudança é a gestação da normalidade; conceito e existência são indissociáveis e geram a simulação. É preciso pensar que somos seres distintos que coexistimos dentro de uma ‘normalidade’ onde temos uma identificação social e que essas distinções, se aproximam, mas, não se encontram. Longe de mim dizer que a minha interpretação é correta. É apenas mais uma entre tantas, visto que, ‘não existe interpretação boa(nem má)’-como fala Bhabha. Apenas queria dizer que todo sujeito só se constrói a partir de suas diferenças.
Caro Paulo.
Nada mais saudável é a dialética do tipo platônica, metodológica, que busca a compreensão de verdades que existem em si, é a metodologia que leve e eleva o argumento, aquele, como diria Sócrates, que “Devemos seguir até onde ele nos levar” e não simplesmente essa do tipo que anula qualquer possibilidade de discussão numa torpe equivalência; isso cheira muito mais à dialética erística bem vagabunda.
Se você apresenta a ideia de que não existe boa ou má interpretação, então meu caro, não faz sentido a própria possibilidade de discussão, afinal, onde todos os critérios são válidos não há espaço para a validação de nenhum. Claro que existem boas e más interpretações, por ex, esse papo de que “todo sujeito só se constrói a partir de suas diferenças” é o típico exemplo de má interpretação da própria construção da identidade sujeito (veja filósofos como Alasdair MacIntyre, Charles Taylor)
De qualquer maneira, você parte de pressupostos e tenho certeza de que espera uma validação interpretativa coerente para estabelecer critérios e fundamentar esses pressupostos, por ex: “de que a verdade histórica é um conjunto de interpretações” ou de “‘violência simbólica’, ou seja a inculcação de valores sócios-culturais que tem a função de legitimar, naturalizar, e fazer sua reprodução.”. vai me dizer que você não considera isso válido, bom e coerente?
No entanto, considero esses seus pressupostos – quer dizer seus não, mas do Foucault e do Bourdieu – bastante discutíveis no que concerne à real profundidade e legitimidade filosófica. O aclamado conceito de “violência simbólica” do Bourdieu, é um tipo de coisa que parece apenas ter aceitação numa certa e estranha, poderíamos chamar, “tradição pós-moderna”, é um conceito que só existe mesmo como uma espécie de espelho distorcido da agenda progressista, um fantasma criado para negar a cultura verdadeiramente Ocidental, em lógica isso se chama “argumento do espantalho”. (aqui eu recomendaria o estudos históricos mais sérios, como Artur Herman em “A ideia de decadência na história ocidental” para compreender o que estou querendo dizer, também recomendo o livrinho do Mario Vieira de Mello “O Humanista”, que liquida as bobagens de Foucault logo nos primeiros capítulos.)
Att
Francisco
Caro Francisco,nada mais a dizer, apenas que respeito seu ponto de vista. NÃO A INTOLERÂNCIA E VIVA A DIFERENÇA.
Caro Paulo
Uma coisa é a “diferença” outra o torpe “relativismo”, eu moralmente até tolero, vai lá, mas o problema é a lógica, dessa ninguém escapa, definitivamente a lógica é “tolerância zero”!
att
Francisco
Bem, Paulo, não à intolerância, concordamos, mas a aceitação da diferença tem que ter limites. O relativismo absoluto não pode ser considerado numa sociedade civilizada. Sempre há o limite do outro. A preservação do indivíduo é fundamental.