Enquanto levo adiante minha pesquisa de doutorado, leio coisas por diversão aqui e ali. Obviamente, não consigo me afastar muito da filosofia e da teologia. E, nos últimos tempos, algo vem me incomodando sobremaneira: é o que tendo a chamar de “avesso da autoridade”.
Se por um lado o famigerado “argumento de autoridade” é não só uma falácia, mas uma tentativa desesperada de arruinar qualquer cadeia de pensamentos logicamente concatenados, o seu oposto tem me parecido ao menos igualmente deplorável. Hegel dá um pouco da Stimmung do que tenho em mente:
A forma mais grave deste desprezo [da filosofia] consiste no fato de que, como se diz, cada um está convencido de saber imediatamente alguma coisa sobre a filosofia em geral e de estar em condições de discutir. Nenhuma outra arte, nenhuma outra ciência é exposta a este supremo grau de desprezo que consiste em que alguén creia que as possui.
G. W. F. HEGEL, Prefácio de Princípios de filosofia do direito
O uso da autoridade em qualquer debate intelectual é sempre uma violência para com o outro. No mínimo, tal uso é um desrespeito à tentativa de entabular um raciocínio que pare em pé por si próprio. Assim, dizer que tal coisa é como é porque o disse Aristóteles, Kant, Hegel ou São Tomás (este último tem gozado de particular preferência…) é lamentável. Contudo, não é menos desrespeitoso o tal avesso.
Desconsiderar o papel do conhecimento do status questionae de um problema, e refestelar-se nisso, é um vício ainda mais pernicioso do que o primeiro, na medida em que o argumento de autoridade afronta apenas a inteligência do opositor enquanto o avesso da autoridade é uma afronta para com milênios de reflexão. Dessa forma, hoje um jornalista pode, num passe de mágica, tornar-se um historiador, filósofo, teólogo etc. E, acima de tudo, pretender ser absolutamente original e/ou fornecer um enorme tijolo para o edifício do conhecimento que terrivelmente padecia da falta de tão grandiosa contribuição. E assim vão se construindo best-sellers, ícones canônicos e novas autoridades pautadas tão somente pela autoridade da não-autoridade propalada. Afinal, não é possível que alguém no passado saiba mais do que o jornalista que publicou o último livro quentinho, recém saído da impressora; a maioria deles nem impressora ou imprensa tinham…
O fato é que um positivismo exacerbado aliado a uma dose cavalar de exaltada ignorância é a combinação perfeita para cair nas graças da massa. E aqui vai o irônico e paradoxal de tudo isso: é exatamente sobre o mar de cadáveres do passado, os quais não valem a pena nem serem consultados, é que surgem as novas autoridades de amanhã.
Gosto de ver seus textos publicados. Pesquisar é bom, mas nada como partilhar um pouco das reflexões com os amigos.
Abraços
F.
“The venerable dead are waiting in my library to entertain me, and relieve me from the nonsense of surviving mortals”.
– Samuel Davies