Em sua coluna no caderno mais! do último dia 28, Marcelo Gleiser publica um texto que, a princípio, parece carregado de boas intenções e de uma posição respeitosa para com a postura religiosa. Embora, deve-se notar, o faça com uma espécie de tom condescendente, quase paterno, que perdoa as bobagens que a criança faz (mas isso é assunto para um outro post, se bem que já é possível notá-lo pela análise do primeiro ponto, abaixo). O que me chama atenção, de fato, são duas posições veiculadas no texto que comentarei separadamente, não obstante formem um só bloco que sinaliza uma ignorância profunda sobre o tema.
1. O progresso da ciência afeta a crença em Deus. Em 2008, motivado pela questão proposta por um seminário da John Templeton Foundation, fiz um post com os links das falas de um debate sobre se a ciência tornaria a crença em Deus obsoleta. Marcelo Gleiser retoma a tese para apenas aparentemente rechaçá-la:
O Deus que interferia no mundo transformou-se no Deus criador: após criar o mundo, deixou-o à mercê de suas leis. Mas, nesse caso, o que seria de Deus? Se essa tendência continuasse, a ciência tornaria Deus desnecessário?
Foi dessa tensão que surgiu a crença de que a agenda da ciência é roubar Deus das pessoas. Um número espantoso de pessoas acha mesmo que esse é o objetivo dos cientistas, acabar com a crença de todo mundo. Os livros de Richard Dawkins e outros cientistas ateus militantes, que acusam os que creem de viverem num estado de delírio permanente, não ajudam em nada a situação. Mas será isso mesmo o que a ciência pretende? Será que esses fundamentalistas ateus falam por todos os cientistas?
De modo algum. Eu conheço muitos cientistas religiosos, que não veem qualquer conflito entre a sua ciência e a sua crença. Para eles, quanto mais entendem o Universo, mais admiram a obra do seu Deus. (São vários.) Mesmo que essa não seja a minha posição, respeito os que creem.
O autor parece mesmo ir contra a “crença” geral de que os cientistas agiriam sistemática e obstinadamente para banir Deus da mente das pessoas, muito embora atribua a esta o papel de nova religião, ao dizer que a tarefa última da atividade científica é “aliviar o sofrimento humano”. Contudo, mais adiante, o colunista expõe o que realmente pensa:
É óbvio que, como já afirmava Einstein, crer num Deus que interfere nos afazeres humanos é incompatível com a visão da ciência de que a natureza procede de acordo com leis que, bem ou mal, podemos compreender. O problema se torna sério quando a religião se propõe a explicar fenômenos naturais; dizer que o mundo tem menos de 7.000 anos ou que somos descendentes diretos de Adão e Eva, que, por sua vez, foram criados por Deus, é equivalente a viver no século 16 ou antes disso. A insistência em negar os avanços e as descobertas da ciência é, francamente, inaceitável.
De fato então, o progresso da ciência ao longo dos anos não deixa mais lugar para um Deus que aja realmente no mundo. Marcelo Gleiser, sem se dar conta, incorre em uma contradição severa, mas comum, que habita o espírito daqueles que ignoram matizes mais sutis do problema. Novamente, há dois pontos a serem vistos:
1.1. Vamos às avessas: se não há mais compatibilidade entre um Deus que seja a explicação última dos fenômenos da natureza (I), mas há lugar para algum tipo de crença em Deus que coabite com a ciência, tal lugar só pode se dar no íntimo da sensibilidade humana, conforme já dizia Schleiermacher (II). Deus se dá somente na experiência humana e em suas questões existenciais. LOGO, só há espaço para a ação de Deus, não nos fenômenos e na ordem íntima do universo, mas no homem e em seus afazeres. Mas SED CONTRA, o autor afirma que crer num Deus que interfira nos afazeres humanos é incompatível com a ciência. Então, qual o “lugar” epistemológico de Deus, ó cientista, se não como explicação última do mundo tampouco nos afazeres humanos?
1.2. O nosso cientista brasileiro, professor nos EUA (ô, que orgulho!) parece desconhecer uma distinção básica que já está em Aristóteles. Há uma grande diferença entre o domínio da natureza, regrado por certas leis, e o âmbito das “coisas humanas”, no qual há liberdade e contingência. O autor mistura indistintamente os “afazeres humanos” com o fato de que “a natureza procede de acordo com leis”. Novamente, se não pelo que foi mostrado em 1.1., Gleiser incorre aqui em contradição: se os dois registros – humano e aquele da natureza – são um e o mesmo, sem distinção, e a crença em um Deus que ingira nas coisas humanas (que estão, ao que parece, intimamente ligadas às leis que regem a natureza) é incompatível com a ciência, não sobra novamente espaço para Deus. Assim, subrepticiamente Marcelo Gleiser deixa vir à tona a crença que a ciência vai banindo Deus do mundo e o texto nada tem, ao menos inconscientemente, de apologeta da convivência harmoniosa entre fé e ciência.
2. O conceito de Deus de Gleiser é de um adolescente em idade escolar. Este é mais um exemplo do que diz Dinesh D’Souza: veja o que acontece quando deixamos um cientista escapar do laboratório. Para o autor, o conceito de Deus é tal que possa ser reduzido a uma mera hipótese explicativa que deverá ser descartada em se mostrando que há aquelas que obtêm maior êxito cognitivo, numa dinâmica quase popperiana. Tal tese defenestra milênios de conhecimentos filosóficos e teológicos e manda ao espaço todas as sutilezas racionais. Ou Deus é uma entidade mágica que deveria operar feitos miraculosos e explícitos, exibindo-se a nós grandes juízes da validade epistemológica do universo, ou ele deve ser posto de lado dada sua ineficácia. Não se deve ignorar aqui o uso do conceito de eficácia, tão caro à nossa época, e que galga os mais altos postos metafísicos a ponto de ser predicado ou não a Deus. Ignora-se que a questão Deus não está em vista de duelar com questões de “como” são as coisas do mundo mas, de “por que” as coisas do mundo são (o que, para qualquer ser racional, afetaria o “como” em última instância..). E note-se que não há MENOS realidade ou objetividade aqui mas, ao contrário, MAIS interferência e MAIS ação de Deus no mundo. Deus como causa última da série de coisas no mundo (como já dissera Aristóteles e S. Tomás de Aquino). Mas, novamente, estamos no terreno de um pensamento refinado que a malha esgarçada da rede conceitual da maioria dos cientistas, não consegue capturar.
Não me espanta que, quando pretendem refutar a existência de Deus, alguns cientistas como Dawkins, façam uso do famigerado “Flying Spaghetti Monster”…
http://pscelestial.blogspot.com/
para que vc não fique sem penitência esses dias, leia esse texto.
“dizer que o mundo tem menos de 7.000 anos ou que somos descendentes diretos de Adão e Eva, que, por sua vez, foram criados por Deus, é equivalente a viver no século 16 ou antes disso.”
Gabriel, poderia por favor me indicar texto(s) que trate desse assunto ostensivamente em vista do catecismo?
(temos a encíclica Humani Generis de Pio XI que diz;”Mas, tratando-se de outra hipótese, isto é, a do poligenismo, os filhos da Igreja não gozam da mesma liberdade, pois os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois(…))
Afinal, evolucionismo ou criacionismo, milhoes ou milhares de anos?
Qual é a posição da Igreja e os estudos sobre esses temas.
Muito obrigado.
Prezado Vital.
Obrigado pela visita, leitura e comentário. Prometo em breve fazer um post sobre o assunto.
Um abraço.
obrigado.
Bom final de semana!
Ou melhor, Feliz Páscoa!
Abs