O iluminado que desconhece a Luz–mais umas bobagens de Zizek

ZizekO excelente site da editoria de Ética e Religião da Australian Broadcast Corporation publicou, por esses dias, o texto do filósofo Slavoj Zizek que vai abaixo. Não resisto a fazer um comentário, longo, chato e necessário, parte a parte (em azul e negrito).

THE ONLY CHURCH THAT ILLUMINATES IS A BURNING CHURCH

A sentença utilizada como título, que será creditada a outro mais adiante no texto, já exibe o élan que move Zizek. O termo “radicalismo” – que por si não é bom nem ruim – utilizado já no primeiro parágrafo como explicitamente nocivo, justificar-se-ia quando se trata de queimar igrejas?

Why is theology emerging again as a point of reference for radical politics? It is emerging not in order to supply a divine “big other,” guaranteeing the final success of our endeavours, but, on the contrary, as a token of our radical freedom, with no big other to rely on.

A Teologia não está emergindo novamente como ponto de referência tão somente porque, em primeiro lugar, ela jamais deixou de sê-lo. Vista abstratamente, a Teologia é uma cosmovisão tanto quanto o é – ou deseja ser – o marxismo ou o liberalismo. Desse modo, sua presença no debate político é, per se, justificada. O caso é que a pergunta tal como colocada, aliada ao adjetivo “radical” tomado pejorativamente, já veicula o que deveria provar, a saber, que é indesejável ter uma cosmovisão teológica como ponto de vista para a leitura, inclusive, da realidade política. E o fato de que ela parte de axiomas e pressupostos que não são compatilhados por todos não pode ser indicado como defeito a não ser sob o prejuízo da democracia que está alicerçada, justamente, no debate entre diferentes.

Fyodor Dostoevsky was aware of how God gives us freDostoiévskyedom and responsibility – he is not a benevolent master steering us to safety, but one who reminds us that we are wholly unto ourselves.

Dostoiévski, se vivo estivesse, teria um dos seus recorrentes ataques epiléticos motivado aqui pela raiva extrema. Se há algo que o Deus cristão – portanto, o Deus de Dostoiévski, como bom cristão ortodoxo – aponta desde o início dos tempos é que a única coisa que irremediavelmente levará o homem à perdição é que ele deposite em si mesmo, “completamente”, suas esperanças; que se regozije em “estar por si mesmo”. De Santo Agostinho a Joseph Ratzinger, passando por São Tomás de Aquino e, especialmente, por Pascal e Kierkegaard, não há um só pensador cristão ou teólogo que não tenha frisado esta verdade fundamental da Revelação. Zizek não só dá mostras de seu ódio desmesurado a qualquer pensamento de matriz teológica, mas exibe seu mais completo desconhecimento do assunto sobre o qual fala (aliás, dos dois: teologia e Dostoiévski). Ao contrário do que pensa a turba imbecil, o pecado original consiste não na “mordida da maçã” (pasmem, Dawkins e demais beócios), mas na subversão da óbvia verdade que consiste no reconhecimento que não extraímos ou derivamos nossa existência de nós mesmos – o que Rahner e, primeiro, Schleiermacher, chamam de “criaturidade”. Desse modo, é claro que a concepção cristã – e ouso dizer, qualquer teologia um pouco sofisticada – é obrigada a conceber Deus como um “senhor benevolente dirigindo-nos para a salvação”. Caso contrário, somos entes insuficientes fadados ao fracasso.

The God that we get here is rather like the God from the old Bolshevik joke about a communist propagandist who, after his death, finds himself in hell, where he quickly convinces the guards to let him leave and go to heaven.

When the devil notices his absence, he pays a visit to God, demanding that He return to hell what belongs to Satan. However, as soon as he addresses God as “My Lord!” God interrupts him: “First, I am not ‘Lord’, but a comrade. Second, are you crazy, talking to fictions? I don’t exist! And third, be short – otherwise, I’ll miss my party cell meeting!”

This is the kind of God an authentic left needs: a God who wholly “became man” – a comrade among us, crucified together with two social outcasts – and who not only “doesn’t exist” but also himself knows this, accepting his erasure, entirely passing over into the love that binds members of the Holy Ghost (the party, the emancipatory collective).

Vou abster-me de comentar mais um patente desconhecimento de Zizek acerca do sentido último da Encarnação e ficar só no problema emergente do texto. Para além da piadinha ruim, surge uma pergunta óbvia: Deus que a esquerda precisa??? A “esquerda”  não precisa de Deus pelo simples fato de que confia em si mesma. De qualquer maneira, é especialmente curioso notar a proximidade entre a concepção de Zizek e aquela da assim chamada “Teologia da Libertação”, que nem é teologia e nem liberta. Mas há aqui outro aspecto a ser ressaltado: Zizek gosta de um Deus que “não existe” porque tal existência vai contra a infinita plasticidade do homem, pressuposto (claramente falso) de toda mentalidade revolucionária.

Catholicism is often designated as a compromise between “pure” Christianity and paganism – but what, then, is Christianity at the level of its notion? Protestantism? No. One should take a further step here: the only Christianity at the level of its notion, which draws all the consequences from its basic event – the death of God – is atheism.

Perceba a transição injustificada “teologia” > “Deus” > “Catolicismo/Cristianismo”. A estultice de Zizek não conhece limites. A questão pelo “cristianismo puro” contém tantos problemas que é melhor deixar pra lá. Mas nenhum destes inumeráveis problemas é tão ruim quanto os pressupostos que movem o questionamento em si. De Nietzsche (filósofo e pensador colossal, que se diga) a Zizek, passando obviamente por Lutero, a questão pela manipulação ou destruição do Cristianismo em seu estado virginal por seus “intérpretes” ou “propagadores” esquece que o próprio Cristo (oh!) sabia ser essencialmente histórico. E sabia, como disse Chesterton, que confiava em insuficientes, fracos, ignorantes e pecadores renitentes, ou seja, em homens comuns, como eu e você. A pergunta por um Cristiansimo puro ignora que ele só existe em fusão com a história, mas que não se reduz a ela. Prova da estupidez de Zizek é que ele “deixa de fora” o fato fundamental do Cristianismo, a saber, a Ressurreição, que mostra justamente que a história, o pecado, a fraqueza, a insuficiência e a morte não são a última palavra quando se fala de Cristianismo (inclusive o “puro”…)

The Spanish anarchist Buenaventura Durutti said: “The only church that illuminates is a burning church.” He was right, though not in the anti-clerical sense his remark was intended to have. Religion only arrives at its truth through its self-cancellation.

In “The Intellectual Beast Is Dangerous,” Bertolt Brecht asserts: “A beast is something strong, terrible, devastating; the word emits a barbarous sound.” Surprisingly, he writes: “The key question, in fact, is this: how can we become beasts, beasts in such a sense that the fascists will fear for their domination?”

São Tomás de Aquino e São Irineu de Lion disseram: “Quem não crer em Jesus Cristo será condenado”. E? Oferecer citações de um “anarquista” e de um “comunista” (ou seja, não-cristãos) é fornecer matéria de discussão ou argumento? E por que a religião só chega a sua verdade por meio de sua auto-aniquilação? Esta última frase é tão de efeito – e tão sem efeito argumentativo – quanto as anteriores.

It is thus clear that, for Brecht, this question designates a positive task, not the usual lament on how Germans, such a highly cultured people, could have turned into the Nazi beasts. “We have to understand that goodness must also be able to injure – to injure savagery.” It is only against this background that we can formulate the gap that separates oriental wisdom from Christian emancipatory logic.

The oriental or Buddhist logic accepts the primordial void or chaos as the ultimate reality and, paradoxically, for this very reason, prefers organic social order with each element in its proper place. At the very core of Christianity, there is a vastly different project: that of a destructive negativity, which does not end in a chaotic void but reverts (and organises itself) into a new order, imposing it on to reality.

Neste ponto, devo dizer, sou levado não só a duvidar da inteligência, mas do caráter e, até mesmo, da sanidade de Zizek. Dois pontos são importantes aqui:

(a) Se Zizek, ao invés de escrever bobagens, estudasse, ele saberia que, desde Platão, uma “ordem social com cada elemento em seu próprio lugar”  só pode ser fruto de uma cosmovisão que contemple, por sua vez, uma disposição hierárquica também no universo como um todo. Era só ler a República. Contudo, se ele não gosta de ler essas coisas antigas e ultrapassadas, era só “olhar” para qualquer igreja cristã, para não falar da Igreja Católica. Se há uma coisa que o Cristianismo legou ao século é o dado incontornável que as coisas devem ter o seu lugar. Só ignorando completamente qualquer vírgula do que assunto que fala é que Zizek pode predicar “negatividade destrutiva” ao Cristianismo que pasmem novamente, define-se exatamente pelo seu caráter eternamente criador, fazendo e refazendo novas todas as coisas.

(b) Se Zizek, ao invés de escrever bobagens, estudasse, ele saberia que do caos sozinho não surge ordem alguma. Mas há aqui, novamente, aquele cacoete típico de sua visão deturpada do real. Ele adoraria que o universo fosse caótico para, em nome da visão iluminada que tem acerca de como seria o mundo ideal, ele o ordenasse segundo seu torpe prazer. Por isso a insistência num Deus que “não exista” e num “caos ou vazio primordial”: para que ele – Zizek – o preencha. Talvez seja por isso que ele tem tanto problema com a ideia de uma “imposição” de uma ordem; se não for ele a impô-la, não pode ser mais ninguém.

O que se segue é uma tentativa de derivar desta caracterização bizarra do que seja o cristianismo um tipo de visão que mostra a identidade profunda entre o comunismo e o cristianismo em sua mais depurada expressão. Ou seja, o amor cristão é subsumido pelo magnânimo projeto de um mundo onde todos são igualmente irmãos sem um pai.

Confesso que já me cansou. Paro por aqui.

For this reason, Christianity is anti-wisdom: wisdom tells us that our efforts are in vain, that everything ends in chaos, while Christianity madly insists on the impossible. Love, especially a Christian one, is definitely not wise. This is why Paul said: “I will destroy the wisdom of the wise” (“Sapientiam sapientum perdam,” as his saying is usually known in Latin).

We should take the term “wisdom” literally here: it is wisdom (in the sense of “realistic” acceptance of the way things are) that Paul is challenging, not knowledge as such. With regard to social order, this means that the authentic Christian tradition rejects the wisdom that the hierarchic order is our fate, that all attempts to mess with it and create another egalitarian order have to end up in destructive horror.

Agape as political love means that unconditional, egalitarian love for one’s neighbour can serve as the foundation for a new order. The form of appearance of this love is what we might also call the idea of communism: the urge to realise an egalitarian social order of solidarity.

Love is the force of this universal link that, in an emancipatory collective, connects people directly, in their singularity, bypassing their particular positions in a social hierarchy.

Indeed, Dostoevsky was right when he wrote: “The socialist who is a Christian is more to be dreaded than a socialist who is an atheist” – yes, dreaded by his or her enemies.

It was St Paul who provided a surprisingly relevant definition of the emancipatory struggle: “For our struggle is not against flesh and blood, but against leaders, against authorities, against the world rulers [kosmokratoras] of this darkness, against the spiritual wickedness in the heavens” (Ephesians 6:12).

Or, translated into today’s language: “Our struggle is not against concrete, corrupted individuals, but against those in power in general, against their authority, against the global order and the ideological mystification that sustains it.”

One should resolutely reject the liberal-victimist ideology that reduces politics to avoiding the worst, to renouncing all positive projects and pursuing the least bad option.

As Arthur Feldmann, a Viennese-Jewish writer, bitterly noted, the price we usually pay for survival is our life.

Slavoj Zizek is the International Director of the Birkbeck Institute for the Humanities, University of London, and one of the world’s most influential public intellectuals. His most recent book is Living in the End Times (Verso, 2010).

Slavoj Zizek é diretor de um instituto do qual, como se vê, deve-se passar longe professor de uma universidade que acaba de cair no meu conceito. E faz o mesmo com os conceitos de “intelectual” e de “mundo”. Se bem que deste último, não ando esperando mesmo muita coisa.

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