Dia desses, estava eu na casa de uns amigos quando chega uma moça, conhecida também, e junta-se a nós. Ela exibia um olhar cansado e triste. Como eu insistisse em lhe perguntar o porquê da expressão desanimada, a moça abriu-se contando-nos seus lamúrios amorosos. Um tanto compadecido, dei lá um ou dois pitacos sobre o assunto. Aparentemente feliz com o que eu lhe dissera, “elogiou”:
Por isso que é bom conversar com um filósofo. Eles sabem dessas coisas!
A historieta – verdadeira – acima, serve de boa introdução a uma resposta à pergunta do título. A experiência geral aponta que, se no que diz respeito aos afazeres de um médico, um advogado ou um engenheiro, o senso comum ao menos tem palpites mais próximos da verdade, no caso de alguém que se dedica profissionalmente à Filosofia (um “filósofo”, nos dizeres da moça), os resultados são sofríveis.
É importante distinguir aqui que não estou fazendo referência ao trabalho de docência que, na maioria das vezes, acompanha tais profissionais.Seria fácil respoder: o profissional da Filosofia que é professor, leciona. A pergunta mais explícita seria talvez “O que o senso comum pensa ser o conteúdo da filosofia?” Do comentário da minha vizinha podemos deprender uma tese que, simultaneamente, acerta e falha terrivelmente. Embutida no elogio está a afirmação subreptícia de que aquele que se dedica à Filosofia pensa sobre “coisas da vida" que, na maior parte dos casos, não estão contidas nos conjuntos “coisas da vida” com os quais se preocupam a Medicina, o Direito ou a Engenharia. De certo modo, aliada à primeira tese, está uma afirmação que poderíamos chamar de metodológica: o conjunto “coisas da vida” sobre o qual a Filosofia se debruça contém “assuntos” que, por não se reduzirem aos das outras áreas do saber, também não possui a mesma metodologia. Assim, o profissional da Filosofia seria algúém que fala sobre um determinado número de “coisas da vida” que são não-científicas, isto é, não tangíveis, não observáveis em si (não em seus efeitos), não propriamente quantificáveis ou mensuráveis.
Assim, o dizer do “filósofo” (não apenas o profissional, mas aqueles todos legados a nós pela tradição ocidental), faz afirmações muito próximas de opiniões mais ou menos abalizadas sobre um universo de coisas que não conseguimos delimitar ao certo, mas sabemos com certeza que não está contido nos conjuntos de coisas de outras áreas. Como uma abordagem mais “profunda” sobre os relacionamentos amorosos…
Todos estes desdobramentos, como disse acima, acertam no que menos vêem e erram onde pensam mais acertar:
1. A percepção de que a Filosofia presta certos “serviços” ou certa “ajuda” em determinado tópicos está correta. Mas seria mais correto explicitar o que aqui está oculto. A filosofia, como a Medicina, Engenharia, Direito ou Informática, também está envolvida com “problemas” ou “questões que demandam clarificação e/ou reposta”;
2. O conjunto de coisas com as quais a Filosofia se preocupa não pode mesmo, em sua maioria, ser reduzido aos conjuntos de outras áreas do saber. Isto por vários motivos, entre eles, que a Filosofia está se perguntando, na maioria das vezes, sobre os problemas mais fundamentais, ou seja, que estão no fundamento, mais ao fundo (ou mais “profundamente) inclusive das demais disciplinas;
3. Isto se materializa no que chamei acima de questão metodológica. Agora deve ficar óbvio que questões ou problemas que são fundamentos daqueles das outras áreas não podem ser analisados – ao menos não inteiramente – pelos métodos derivados das clarificações ou respostas das perguntas que a Filosofia se faz. Ela está em um momento (lógico, não cronológico) anterior aos das “ciências”, por exemplo;
4. Se a filosofia não pode – e nem quer – ajudar diretamente nos problemas amorosos, a ideia de fundo está, por sua vez, um pouco correta. A Filosofia preocupa-se sim, em seu escopo, com as questões ditas “existenciais”. Dito de outro modo, a Filosofia tem sim, como problema, a pergunta pelo SENTIDO, em suas mais diversas expressões (qual o sentido das proposições “A estrela da manhã é a primeira a aparecer” e “Vênus é o primeiro corpo celeste (para além do Sol) a ser visto no céu”. Têm elas o mesmo sentido, já que “Estrela da manhã” refere-se a “Vênus”? (Frege) ou “Qual o sentido de viver uma existência que se sabe finita? (Kierkegaard)) . Jamais um experimento de laboratório terá, como resultado, o significado e o impacto deste mesmo experimento na vida das pessoas e na história do mundo. Jamais um experimento com clonagem ou células-tronco fornecerá o JUÍZO DE VALOR (ou seja, se ele é bom ou ruim) acerca do que fazer com seus resultados. Isto é, por exemplo, um problema próprio da Filosofia (no caso, da reflexão filosófica sobre as ciências).
5. Mas nada disso significa que a Filosofia é um amontoado de simples “opiniões”. Primeiro porque opinião tem, na grande maioria das vezes, uma grande parcela do GOSTO do dono da opinião. Admitiríamos como verdade algo que um cientista dissesse, baseado simplesmente no seu GOSTO? Ou lhe pediríamos provas, argumentos, indícios? Com a Filosofia – que, em uma palavra, CRIOU o método científico – não acontece diferentes. O que os filósofos dizem DEVE ser visto como a tentativa de clarear um pouco um problema ou, se possível, resolvê-lo. uma terceira opção é mostrar que havia um problema onde achávamos que não havia (cf. o excelente livro de Mário Porta, A filosofia a partir de seus problemas). Desse modo, os filósofos também não admitem uma tese apresentada apenas como uma mera opinião. Ele deve conter argumentos que a sustentem.
6. Por fim, a nossa amiga ficaria surpresa ao saber que, entre as perguntas feitas pela filosofia, estão algumas como: Como é possível que conheçamos (coisas do mundo)? O que é, realmente, conhecer? O que é um conhecimento verdadeiro? Como devemos agir? Todas as nossas ações têm o mesmo valor e o mesmo sentido? O que é um valor? O que é o bem? Por que existem coisas ao invés de não existir nada? Por que chamamos pelo mesmo nome (por exemplo, “Homens” ou “Cadeiras”) indivíduos diferentes (eu, o Jonas e o Bruno ou a cadeira da minha casa e a cadeira do café da biblioteca)? Por que chamamos pelo mesmo nome coisas que mudam ao longo do tempo (Fernando bebê e Fernando com 18 anos)? O que é o tempo? O que é o espaço? O que é um número? Qual o fundamento da matemática? E da física? O que é a inteligência? Em que sentido dizemos que computadores são ‘inteligentes’? Perceba-se que, sem as respostas a algumas destas perguntas, as ciências simplesmente não existiriam.
Ou talvez, se um dia ela se interessasse por ler isto aqui, a moça com problemas amorosos não mais se surpreenderia. Mas talvez não existiria este post.
* Este post retira um pouco de sua motivação das perguntas e do interesse de Fernando A. Vicente, Rafael Dorneles, Bruno Duarte e Jonas Giehl.
4 palavras pra vc:
PE
TÁ
CU
LO
!!
Muuuito bom!
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