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Para Estudar Filosofia – 3

Chegamos então ao terceiro post da série de dicas para estudar Filosofia, e por que não qualquer coisa, a sério (veja as partes 1 e 2). Devo dizer que o feedback sobre os dois primeiros têm sido excelentes e não apenas os posts têm sido proveitosos, como também têm levantado questões importantes sobre metodologia de estudo e escrita em Filosofia.

Nesta semana, tenho o prazer de publicar as dicas do Prof. Dr. Juvenal Savian Filho, atual coordenador do Programa de Pós-Graduação do departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. Juvenal concentra suas pesquisas no pensamento medieval, especialmente na obra de Boécio de Roma, bem como de temas que mantêm continuidade com elementos desenvolvidos nos períodos tardoantigo e medieval. Entre diversos trabalhos, Juvenal publicou a tradução dos Opuscula Sacra, de Boécio (Martins Fontes, 2005) e Metafísica do ser em Boécio (Loyola, 2008). A satisfação é dobrada, uma vez que o Juvenal foi meu professor nos tempos da Graduação, e é alguém por quem tenho grande estima.

Vamos então à contribuição do Juvenal. E não se esqueçam de comentar e divulgar.

* * *

1. Em primeiríssimo lugar, desenvolva autocrítica: desconfie de si mesmo e das suas melhores ideias. Pergunte-se por que você pensa o que pensa. É uma forma de testar se o seu pensamento é sólido ou ingênuo ou, ainda, autoritário.

2. Raciocine por contraposição: sempre busque entender posições diferentes da sua, principalmente as que são contrárias à sua. Saiba que o pensamento filosófico solitário é das coisas mais frustrantes dessa vida. Ao contrário, quando praticado dentro de uma comunidade de pensamento, é algo bastante prazeroso. Mas, nessa comunidade, nem todos pensarão como você; para formar realmente uma comunidade que pensa, é preciso levar em conta as visões diferentes, o que pode fazer com que você mude sua posição filosófica ou que a confirme, tornando-a ainda mais sólida.

3. Respeite os especialistas, mas seja crítico com relação ao que eles dizem, buscando averiguar o que eles dizem, principalmente pela leitura das fontes que eles citam. Saiba que há especialistas que só leem coisas publicadas há mais de 50 anos. Mas, quando abrem a boca, são extremamente autoritários, como se fossem os melhores especialistas na área.

4. Não acredite rapidamente na maneira como um filósofo fala de outro filósofo. Se o filósofo x fala do filósofo y, procure ler o que pensa o filósofo y. Na maioria das vezes, os filósofos não falam exatamente do que realmente outros filósofos pensaram. Projetam neles sua maneira de ver, a fim de criticá-los ou tomá-los como confirmação do que pensam.

5. Como exemplo do que é dito no item anterior, não aceite ingenuamente, mas procure saber o que está por trás de afirmações que parecem consensos, como: Platão acreditava em dois mundos (o inteligível e o sensível); o platonismo e o cristianismo desprezam o corpo e só valorizam a alma; a alma é uma “coisa” que está “dentro” do corpo; na Idade Média, a filosofia estava a serviço da fé; Descartes era um dualista; só com Descartes se descobre o sujeito do conhecimento; a metafísica não tem valor epistemológico; o empirismo é justificado nos cinco sentidos; a consciência é uma faculdade mental e não um modo de ser; o fato de a consciência estar ligada ao cérebro dá base para dizer que o cérebro é que produz a consciência; intelecto e vontade são faculdades autônomas etc. Esses exemplos poderiam multiplicar-se ad nauseam… Se os estudamos com mais intensidade, podemo virar de ponta-cabeça o que os livros (ruins) e professores de filosofia (mal formados) costumam repetir também ad nauseam

6. Desconfie quando alguém diz que a História da Filosofia não é linear. De fato, ela não é. Mas 99% dos professores de filosofia tratam a História da Filosofia como linear! Dizem que Aristóteles corrigiu Platão; que Descartes corrigiu tudo o que veio antes; que Hume refutou Descartes; que Kant melhorou Descartes e Hume; que Hegel é o suprassumo da racionalidade; que Freud desmentiu tudo o que veio antes dele; que os neurocientistas desmentiram Freud; e sabe-se lá o que vem pra frente, pra nos “superar”. Mas, a imensa maioria dos que dizem isso também insiste que não crê na linearidade da História da Filosofia… É só tocar no filósofo preferido de alguém e esse alguém desembesta a dizer que seu filósofo resolveu tudo o que veio antes dele… Os filósofos e professores de filosofia precisariam rir um pouco de si mesmos…

7. O que faz escapar da linearidade é ver que os filósofos nem sempre tratam dos mesmos temas e problemas. Quando Kant fala de metafísica, está longe da metafísica de Tomás de Aquino ou Duns Escoto, por exemplo. E talvez mesmo da de Descartes, sob certos pontos de vista. Há problemas que aparecem do mesmo modo em diferentes tempos e autores; há outros que são semelhantes, mas não são os mesmos.

8. Desconfie da ideia de que é possível tratar de conceitos sem estudar sua história. Dizer que eles não têm história significa crer que eles são sempre entendidos da mesma forma, mas isso está longe de corresponder à verdade.

9. Nunca confie nas pessoas de um livro só.

10. Por outro lado, também desconfie de quem lê muitos livros, mas nunca até o fim!

 

G. Ferreira

View Comments

  • Muito bom sr. Gabriel Ferreira ^^
    Estes posts estão cada dia uns melhores que os outros.
    Os mesmo estão sendo de grande utilidade, continuem postando rs.

    Muito obrigado ai por essa disposição em liberar essas dicas a quem está iniciando no estudo da Filosofia!

  • Muito bons todos esses posts! Estava procurando algo relacionado a isso, porque vejo que tenho muitas coisas para estudar, e acabo não sabendo nem por onde começar.

  • Fenomenal!

    Esse artigo fui esclarecedor. Simplesmente desenhou a maioria dos meus professores. E me abriu os olhos!

    Obrigado, Gabriel!

    • Que bom, Warley.

      Obrigado pelos comentários. Aproveite para explorar os outros posts. Espero que continuem te auxiliando.
      Um abraço.

  • Parabéns por esta série de posts!

    Gostei deste, apesar que aprecio o trabalho do Prof. Francisco Razzo.

    Só fiquei curioso em saber mais um pouco sobre um ponto da dica 7:

    "Quando Kant fala de metafísica, está longe da metafísica de Tomás de Aquino ou Duns Escoto, por exemplo."

    Paz e Bem!

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