Como se poderá ler abaixo, hoje o papa Bento XVI falou aos bispos brasileiros do Nordeste (Regional Nordeste 5 da CNBB). O discurso é claro e distinto: os pastores de almas têm o dever de instruir os fieis acerca de questões políticas quando elas tocam os princípios fundamentais do éthos cristão. Só podemos agradecer a Deus por ter dado à Sua Igreja um pontífice de tal envergadura.
Mas infelizmente as coisas não são tão fáceis. Dentro de poucas horas a imprensa será inundada de comentários e “correções” ao discurso do papa, provenientes de “católicos” “exemplares” (as aspas em cada uma das palavras, separadamente, é proposital: não são nem católicos, tampouco seriam exemplares se o fossem) da estirpe de Leonardo Boff, Frei Betto e Gabriel Chalita. Também não serão poucos aqueles que acusarão o papa e a Igreja de estarem se imiscuindo em política e que isso é uma afronta ao Estado laico etc… Antes dos discurso do papa, uma ou outra palavrinha:
1) Só vê como problema a participação da Igreja – e das religiões de modo geral – no processo político quem entende a política como joguete, acomodação de interesses ou como uma entidade abstrata que paira imaculada por sobre a sociedade de facto. É a nova classe dos “informados em política”, ou seja, aqueles que fazem do debate político uma corrida pra ver quem possui a informação mais nova, mais recente ou reduzem tal debate a um duelo com o objetivo de ver quem saca a “informação” mais rápido.
A política séria, refletida, sempre foi feita a partir de princípios e ideias. Dos sofistas até Voegelin, passando por Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Hobbes, Kant, Burke, Tocqueville e Hegel, o pensamento político sempre pressupos e discutiu cosmovisões, definições antropológicas e éticas. Portanto, só alguém revestido de muita ingenuidade ou má-fé não vê como absolutamente necessária a presença de valores – incluídos aí os religiosos – no debate político. Ou concepções cosmológicas, antropológicas e éticas também devem ficar à parte da religião?
2) Irrita-me de maneira peculiar o discurso que começa com “o Estado é laico”. A começar pelo fato de nenhum dos proponentes desse “argumento”, absolutamente nenhum, ver problema na ingerência do Estado na Religião em eventos como a Revolução Francesa, por exemplo. A laicidade do Estado só é arrolada como defesa, mas quando a posição é o ataque não há problema nenhum em usar os instrumentos do Estado para guilhotinar e manter cativos os membros da Igreja.
Vamos esclarecer isso de uma vez por todas: de fato, o Estado é laico e deve mesmo haver um fosso separando a Igreja e o Estado. Mas absolutamente não existe tal fosso entre Religião e Sociedade. Assim, se o Estado pode se dar ao luxo de não se “misturar” com Religião, a Sociedade não goza de tal premissa. Ao contrário do que gosta de pensar a mentalidade revolucionária de boteco, a sociedade não é um ideal ou um programa; é uma coleção de indivíduos com seus valores, princípios e convicções. Prova de que quando é a religião que entra na conversa o debate é viciado, é que se pensa ser muito natural que membros de determinada classe (trabalhadores, profissionais liberais etc) votem de acordo ou defendam os princípios e valores próprios daquele grupo. Mas vá um católico dizer que prefere alguém comprometido com os mandamentos da Igreja…
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Discurso do Santo Padre, o papa Bento XVI, aos bispos brasileiros do Regional Nordeste 5 em visita Ad Limina, proferido em 28/10/2010
Amados Irmãos no Episcopado,
«Para vós, graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo» (2 Cor 1, 2). Desejo antes de mais nada agradecer a Deus pelo vosso zelo e dedicação a Cristo e à sua Igreja que cresce no Regional Nordeste 5. Lendo os vossos relatórios, pude dar-me conta dos problemas de caráter religioso e pastoral, além de humano e social, com que deveis medir-vos diariamente. O quadro geral tem as suas sombras, mas tem também sinais de esperança, como Dom Xavier Gilles acaba de referir na saudação que me dirigiu, dando livre curso aos sentimentos de todos vós e do vosso povo.
Como sabeis, nos sucessivos encontros com os diversos Regionais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, tenho sublinhado diferentes âmbitos e respectivos agentes do multiforme serviço evangelizador e pastoral da Igreja na vossa grande Nação; hoje, gostaria de falar-vos de como a Igreja, na sua missão de fecundar e fermentar a sociedade humana com o Evangelho, ensina ao homem a sua dignidade de filho de Deus e a sua vocação à união com todos os homens, das quais decorrem as exigências da justiça e da paz social, conforme à sabedoria divina.
Entretanto, o dever imediato de trabalhar por uma ordem social justa é próprio dos fiéis leigos, que, como cidadãos livres e responsáveis, se empenham em contribuir para a reta configuração da vida social, no respeito da sua legítima autonomia e da ordem moral natural (cf. Deus caritas est, 29). O vosso dever como Bispos junto com o vosso clero é mediato, enquanto vos compete contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais necessárias para a construção de uma sociedade justa e fraterna. Quando, porém, os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas (cf. GS, 76).
Ao formular esses juízos, os pastores devem levar em conta o valor absoluto daqueles preceitos morais negativos que declaram moralmente inaceitável a escolha de uma determinada ação intrinsecamente má e incompatível com a dignidade da pessoa; tal escolha não pode ser resgatada pela bondade de qualquer fim, intenção, conseqüência ou circunstância. Portanto, seria totalmente falsa e ilusória qualquer defesa dos direitos humanos políticos, econômicos e sociais que não compreendesse a enérgica defesa do direito à vida desde a concepção até à morte natural (cf. Christifideles laici, 38). Além disso no quadro do empenho pelos mais fracos e os mais indefesos, quem é mais inerme que um nascituro ou um doente em estado vegetativo ou terminal? Quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático – que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana – é atraiçoado nas suas bases (cf. Evangelium vitæ, 74). Portanto, caros Irmãos no episcopado, ao defender a vida «não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambigüidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo» (ibidem, 82).
Além disso, para melhor ajudar os leigos a viverem o seu empenho cristão e sócio-político de um modo unitário e coerente, é «necessária — como vos disse em Aparecida — uma catequese social e uma adequada formação na doutrina social da Igreja, sendo muito útil para isso o "Compêndio da Doutrina Social da Igreja"» (Discurso inaugural da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, 3). Isto significa também que em determinadas ocasiões, os pastores devem mesmo lembrar a todos os cidadãos o direito, que é também um dever, de usar livremente o próprio voto para a promoção do bem comum (cf. GS, 75).
Neste ponto, política e fé se tocam. A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo que abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. «Com efeito, sem a correção oferecida pela religião até a razão pode tornar-se vítima de ambigüidades, como acontece quando ela é manipulada pela ideologia, ou então aplicada de uma maneira parcial, sem ter em consideração plenamente a dignidade da pessoa humana» (Viagem Apostólica ao Reino Unido, Encontro com as autoridades civis, 17-IX-2010).
Só respeitando, promovendo e ensinando incansavelmente a natureza transcendente da pessoa humana é que uma sociedade pode ser construída. Assim, Deus deve «encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, econômica e particularmente política» (Caritas in veritate, 56). Por isso, amados Irmãos, uno a minha voz à vossa num vivo apelo a favor da educação religiosa, e mais concretamente do ensino confessional e plural da religião, na escola pública do Estado.
Queria ainda recordar que a presença de símbolos religiosos na vida pública é ao mesmo tempo lembrança da transcendência do homem e garantia do seu respeito. Eles têm um valor particular, no caso do Brasil, em que a religião católica é parte integral da sua história. Como não pensar neste momento na imagem de Jesus Cristo com os braços estendidos sobre a baía da Guanabara que representa a hospitalidade e o amor com que o Brasil sempre soube abrir seus braços a homens e mulheres perseguidos e necessitados provenientes de todo o mundo? Foi nessa presença de Jesus na vida brasileira, que eles se integraram harmonicamente na sociedade, contribuindo ao enriquecimento da cultura, ao crescimento econômico e ao espírito de solidariedade e liberdade.
Amados Irmãos, confio à Mãe de Deus e nossa, invocada no Brasil sob o título de Nossa Senhora Aparecida, estes anseios da Igreja Católica na Terra de Santa Cruz e de todos os homens de boa vontade em defesa dos valores da vida humana e da sua transcendência, junto com as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens e mulheres da província eclesiástica do Maranhão. A todos coloco sob a Sua materna proteção, e a vós e ao vosso povo concedo a minha Benção Apostólica.
Grande Mr. G.,
parabéns pelos comentários ao discurso do Papa. Sintetizou tudo o que eu poderia querer dizer sobre o assunto. Particularmente porque, nessa semana, me vi envolvido numa discussão sobre a relação entre Igreja e estado. É claro que a conversa não acabou bem… acho que sou péssimo em convencimento, mesmo quando tenho alguma razão… hehehe.
Mas, como diz o próprio Papa, não devemos nos preocupar com ser populares. O compromisso com a Verdade nos deve bastar. Aliás, é sempre um prazer ler os discursos e textos de Bento XVI, não acha? Fico bastante impressionado com a maneira simples e direta com que ele aborda temas tão profundos. O texto, assim, consegue seu efeito tanto sobre o cristão leigo, quanto sobre o teólogo estudioso. Bento XVI é realmente genial.
Agradeço mais uma vez seus comentários. Fique com Deus, e pare de ser chorão… hehehe…
Um grande abraço!!
Marcelo Viana.
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