Hoje faleceu José Saramago, o primeiro escritor lusófono a ser laureado com o Prêmio Nobel. Para além de gostar ou não gostar de sua produção literária, sua importância é inegável. Contudo, a obra de Saramago não é somente sua expressão criadora. Por opção deliberada e explícita do próprio, passou a ser, talvez mais de uns tempos pra cá, sua expressão intelectual e, mais premente, sua expressão existencial.
Em O evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira e Caim, Saramago não apenas modela e burila sua arte mas, como todo artista que se pretenda sério, desenha ou redige a sua metafísica. Por “metafísica” entendo aqui um discurso sobre a estrutura última do real, daquilo que é. E sabemos desde sempre que sua visão de mundo é pautada por sua opção pelo marxismo, que aparece não somente em suas falas como em suas participações (como em encontros com Stédile et caterva). É também explícito seu ateísmo. Esses dois pilares – que obviamente se conectam e se inter-alimentam – perfazem o sustentáculo, portanto, de sua metafísica (aliados a uma dose não desprezível de eclesioclastia). É o que podemos ver em sua última entrevista para a Folha de São Paulo:
Desde muito novo orientei-me para a consciência de que o mundo está errado. Não importa aqui qual foi o grau da minha militância todos esses anos. O que importa é que o mundo estava errado, e eu queria fazer coisas para modificá-lo. O espaço ideológico e político em que se esperava encontrar alguma coisa que confirmasse essa idéia era, é claro, a esquerda comunista. Para aí fui e aí estou. Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer? Assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista.
A história da humanidade é um desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz. Se ainda fosse só a guerra, em que as pessoas se enfrentam ou são obrigadas a se enfrentar… Mas não é só isso. Esta raiva que no fundo há em mim, uma espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida. Não a merecemos. Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem. O animal, para se alimentar, tem que matar o outro animal. Mas nós não, nós matamos por prazer, por gosto. Se fizermos um cálculo de quantos delinqüentes vivem no mundo, deve ser um número fabuloso. Vivemos na violência. Não usamos a razão para defender a vida; usamos a razão para destruí-la de todas as maneiras -no plano privado e no plano público.
Por que eu teria de mudar [em relação a seu ateísmo]? Porque supostamente me salvou a vida? Quem me salvou foram os médicos e a minha mulher. E Deus se esqueceu de Santa Catarina? Não quero ofender ninguém, mas Deus não existe. Salvo na cabeça das pessoas, onde está o diabo, o mal e o bem. Inventamos Deus porque tínhamos medo de morrer, acreditávamos que talvez houvesse uma segunda vida. Inventamos o inferno, o paraíso e o purgatório. Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle, não tanto das almas, porque à igreja não importam as almas, mas dos corpos. O sonho da igreja sempre foi nos transformar em eunucos. A Bíblia foi escrita ao longo de 2.000 anos e não é um livro que se possa deixar nas mãos de um inocente. Só tem maus conselhos, assassinatos, incestos…
E por fim:
A igreja, que, para efeitos propagandísticos, cultiva a modéstia e a humildade, nos comportamentos age com um orgulho sem limite. Por isso criei esse padre, que quer exorcizar um elefante, como se fosse possível imaginar o que vai ali pela cabeça do bicho e, por analogia, o que vai pela cabeça de um homem comum.
Há duas experiências das quais pode partir uma analítica séria da existência: a da unidade e a da ruptura. Ou há uma unidade primordial profunda entre o homem e sua existência, mesmo que por vezes ela possa fugir de nós sob signos de rupturas, ou a marca distintiva da experiência humana é o fato da irreconciliabilidade, da fratura e do desnível entre o homem e sua vida, ainda que cravejada aqui e ali de irrupções verticais ascendentes que costumamos chamar de felicidade. Como podemos depreender de suas falas acima, Saramago parece partir desta última (que devemos reconhecer, costuma ser a opção daqueles que enxergar bem as coisas). Entretanto, ao ler tudo o que hoje inundou todas as mídias sobre o passamento do autor português (não sem um certo fastio), não consegui não me recordar de outro merecedor do Prêmio Nobel de Literatura, só que de 1957, Albert Camus.
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Camus (1913-1960), como Saramago, dispensa apresentações. Assim como o português, também teve infância pobre, vivenciou de perto em sua Argélia, conflitos entre “forças imperialistas” e “oprimidos colonizados”, experimentou o sofrimento de uma doença horrível – arrastou a tuberculose e sucessivos pneumotórax até sua morte trágica em um acidente de automóvel – e, por fim, completa 50 anos de falecimento no ano em que morre Saramago. Talvez por isso – odeio tais conjeturas, mas enfim – tenha também partido da experiência fundamental do sofrimento e do mal que são índices de assimetria entre o homem e sua existência. É a esta assimetria entre uma “paixão de viver e um destino de morte”, que se espalha e contamina toda nossa epistemologia, bem como toda ética possível, que Camus chama Absurdo. Mas aqui já começa por se desenhar a lucidez e a honestidade existencial de Camus, que jamais Saramago pôde alcançar.
Para começar, ao contrário do que afirma o português, não há nada de errado com o “mundo”, A natureza – phýsis – segue sendo si mesma inclusive como um paradigma de acordo. Nela não há divórcio possível. Nos diz Camus:
Se eu fosse árvore por entre as árvores, gato por entre os animais, esta vida teria um sentido ou, sobretudo, esse problema [do Absurdo] não se colocaria, pois eu faria parte deste mundo.
Camus é lúcido porque sabe que é no encontro entre homem e mundo que surge o desnível. É o homem, por sua condição de infinitamente desejante que só pode ser em uma existência finita num mundo que o ultrapassa, que compõe o Absurdo. Contudo, o mundo não é somente o locus da história humana, mas é também phýsis:
A miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na História, o sol ensinou-me que a História não é tudo.
Lucidez que se desdobra na consciência de que toda tentativa de resolver aquele divórcio de modo imanente é desonestidade. Assim, Marx e os revolucionários não acrescentam uma gota de bálsamo na úlcera da existência; ao contrário, fazem uso de um problema metafísico para legitimar uma tentativa de resposta histórica e histérica que desemboca em mais absurdos. É só quem parte da idéia de que é possível corrigir a existência por expedientes políticos, ao invés de exclusivamente por uma ascese, que pode acreditar – sim, é uma crença – na indiferença entre a finitude e o assassinato:
Há crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes.
Mas para ser honesto, Camus também reflete sobre Caim. A questão “Deus” foi sempre um problema urgente em sua vida (que se lembre sua dissertação de conclusão do curso de filosofia, sobre Plotino e Santo Agostinho). Mas novamente, aquilo que chamamos de lucidez e honestidade existencial é o que diferencia o rebelde do Revoltado. A reflexão camusiana se impõe em toda sua profundidade porque não olha a condição humana a partir do homem ideal plasmado pela revolução, mas para o homem infinitamente apaixonado por sua existência:
Com Caim, a primeira revolta coincide com o primeiro crime. A história da revolta, tal como a vivemos atualmente, é muito mais a dos filhos de Caim do que a dos discípulos de Prometeu. […] Sob esta ótica, o Novo Testamento pode ser considerado como uma tentativa de responder antecipadamente a todos os Caim do mundo, ao suavizar a figura de Deus e ao criar um intercessor entre ele e o homem. O Cristo veio resolver dois problemas principais, o mal e a morte, que são precisamente os problemas dos revoltados. […] A noite do Gólgota só tem tanta importância na história dos homens porque nessas trevas a divindade, abandonado ostensivamente os seus privilégios tradicionais, viveu até o fim, incluindo o desespero, a angústia da morte. [… mesmo] A gnose, por suas origens gregas, permanece conciliadora e tende a destruir o legado judaico do cristianismo.
Camus era, em suas próprias palavras, não um ateu, mas um blasfemo. O que pode soar adolescente, é o grito fundamental do homem frente à experiência do Absurdo e do Mal mas que mantém a clareza de visão. Não se trata de negar infantilmente a Deus, como uma “criação humana” (o próprio Feuerbach já se encheria…), mas de experienciar radicalmente o paradoxo, a dúvida e o não-entendimento. Há algum santo que, neste sentido, não seja blasfemo?
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Em 1948, Camus foi chamado a falar no convento dominicano de Latour-Maubourg. Ao contrário do que se poderia esperar, o “ateu” começa por denunciar a desonestidade existencial, aqui sob o nome de “farisaismo laico":
Há, de início, um farisaísmo laico ao qual eu me esforço por não ceder. Eu chamo farisaísmo laico aquele que faz crer que o cristianismo é coisa fácil, e que faz menção de exigir ao cristão, ao nome de um cristianismo visto do exterior, mais do que ele exige de si mesmo. […] eu não partirei jamais do princípio que a verdade do cristianismo é ilusória, mas somente do fato que eu não pude nela adentrar.
À guisa de conclusão, Camus é ponto-a-ponto infinitamente mais honesto ao seu problema inicial do que Saramago. Este último, para além de sua contribuição estilística e literária, não esgarçou um só centímetro do limite da reflexão humana sobre sua condição existencial, Sua metafísica, no sentido que explicitei acima, desdobra-se em ranço (marxista-eclesioclasta-ateu) que denuncia a própria obra. E não consegue combater o Absurdo porque nele, ao contrário do que ocorre na obra de Camus, a criação para na historia e jamais alcança a existência.
Muito bom artigo.
parabéns!
Olá Gabriel,sou um ex-aluno seu o Objetico Senador,cara você não sabe a falta que faz,seu artigo é muito bom,apesar de não ter entendido plenamente o que seria o “Absurdo”.
Parabéns pelo trabalho.
Abraços