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Um resumo do meu pensamento, por H. U. von Balthasar

Hans Urs von Balthasar é, certamente, um dos grandes nomes da Teologia do século XX. Com  uma obra monumental, neste artigo de 1988 o teólogo suíço faz uma síntese de seu percurso reflexivo que nos parece fundamental percorrer em absoluto.

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Quando um homem publica muitos livros grandes, as pessoas se perguntam: o que, fundamentalmente, ele quis dizer? Se ele é um romancista prolífico, por exemplo, um Dickens ou um Dostoiévski, escolhe-se um ou outro de seus trabalhos sem se preocupar muito com sua obra como um todo. Mas com um filósofo ou um teólogo, o caso é totalmente diferente. Deseja-se tocar o coração de seu pensamento, porque se pressupõe que tal coração deva existir.

A questão tem sido frequentemente dirigida a mim por alguns, desconcertados pelo grande número dos meus livros: Por onde alguém deve começar a fim de entendê-lo? Eu tentarei condensar meus vários fragmentos, “in a nutshell” (em poucas palavras), como dizem os ingleses, tanto quanto for possível de ser feito sem me trair muito. O perigo de tal compressão consiste em ser muito abstrato. É necessário amplificar o que se segue com minhas obras biográficas, por um lado (sobre os Padres da Igreja, sobre Karl Barth, Buber, Bernanos, Guardini, Reinhold Schneider, e todos os autores tratados na trilogia) e, por outro, com as obras sobre espiritualidade (tais como as sobre a oração contemplativa, sobre Cristo, Maria e a Igreja) e, finalmente, com as numerosas traduções dos Padres da Igreja, de teólogos da Idade Média e dos tempos modernos. Mas aqui é necessário limitarmo-nos a apresentar o esquema da Trilogia: Estética, Dramática e Lógica.

Comecemos com uma reflexão sobre a situação do homem. Ele existe como um ser limitado em um mundo limitado, mas sua razão está aberta ao ilimitado, para a totalidade do ser. A prova consiste no reconhecimento de sua finitude, de sua contingência: eu existo, mas poderia não existir. Muitas coisas que não existem poderiam existir. Essências são limitadas, mas o ser (l’être) não. Esta divisão, a “distinção real” de São Tomás, é a fonte de todo pensamento religioso e filosófico da humanidade. Não é necessário lembrar que toda a filosofia humana (se nós abstrairmos o domínio bíblico e sua influência) é essencialmente religiosa e teológica, porque coloca o problema do Ser Absoluto, seja atribuindo a este um caráter pessoal ou não.

Quais são as principais soluções que a humanidade apresenta para este enigma? Pode-se tentar deixar para trás a divisão entre Ser (Être) e essência, entre o infinito e o finito; poder-se-ia então dizer que todo o ser é infinito e imutável (Parmênides) ou que tudo é movimento, ritmo entre contrários, devir (Heráclito).

No primeiro caso, o finito e limitado será, como tal, o não-ser, como uma ilusão que se deve detectar: esta é a solução do misticismo budista com suas milhares de nuances no oriente. É também a solução plotiniana: a verdade é apenas apreendida no êxtase onde se toca o Uno, que é ao mesmo tempo, Tudo e Nada (relativo ao todo o resto que só parece existir). O segundo caso se contradiz a si próprio: puro devir em pura finitude só pode se conceber em identificando os contrários: vida e morte, boa fortuna e adversidade, sabedoria e insensatez (como Heráclito o fez).

Assim, é necessário começar por uma inescapável dualidade: o finito não é o infinito. Em Platão o mundo sensível, terrestre não é o mundo divino, ideal. A questão é, então, inevitável: De onde vem a divisão? Por que não somos Deus?

A primeira tentativa de uma resposta: deve ter havido uma queda, um declínio, e o caminho para a salvação só pode ser o retorno do finito sensível para o infinito inteligível. Este é o caminho de todas as místicas não-bíblicas. A segunda tentativa de uma resposta: o Deus infinito tinha necessidade do mundo finito. Por quê? Para se aperfeiçoar a si mesmo, para atualizar todas as suas possibilidades? Ou mesmo para ter um objeto para amar? As duas soluções levam ao panteísmo. Em ambos os casos, o Absoluto, Deus em si mesmo, torna-se indigente, finito. Mas se Deus não tem necessidade do mundo então: Por que o mundo existe?

Nenhuma filosofia pode dar uma resposta satisfatória para esta questão. São Paulo diria para os filósofos que Deus criou o homem de tal modo para que este procurasse o Divino, tentasse atingir o Divino. É por isso que toda a filosofia pré-cristã é, em suma, teológica. Mas, de fato, a verdadeira resposta à filosofia só pode ser dada pelo Ser ele mesmo, revelando a si mesmo por si mesmo. Seria o homem capaz de entender essa revelação? A resposta afirmativa seria dada apenas pelo Deus da Bíblia. Por um lado, este Deus, Criador do mundo e do homem, conhece sua criatura: “Eu que criei o olho, não vejo? Eu que criei o ouvido, não ouço?” e nós adicionamos “Eu que criei a linguagem, não poderia falar e me fazer ouvir?” E isto coloca a contrapartida: para ser capaz de ouvir e entender a auto-revelação de Deus, o homem precisa em si mesmo estar à procura de Deus, ser esta uma questão que se coloca a ele. Assim, não há teologia bíblica sem uma filosofia religiosa. A razão humana deve ser aberta ao infinito.

É aqui que a substância do meu pensamento se insere. Deixe-me dizer antes de tudo que o termo tradicional “metafísico” significa o ato de transcender a física, que para os gregos significava a totalidade do cosmos, do qual o homem fazia parte. Para nós, física é outra coisa: a ciência do mundo material. Para nós o cosmos atinge sua perfeição no homem que, ao mesmo tempo, sintetiza o mundo e o ultrapassa. Assim nossa filosofia será essencialmente uma meta-antropologia, pressupondo não somente as ciências cosmológicas, mas também as ciências antropológicas e ultrapassando-as através da questão do ser e da essência do homem.

O homem existe apenas em diálogo com seu vizinho. A criança é trazida à consciência de si mesma apenas pelo amor, pelo sorriso de sua mãe. Neste encontro um horizonte ilimitado se abre para ela, revelando-lhe quatro coisas: (1) que ele é um no amor com sua mãe, mesmo em sendo outro que sua mãe, entretanto, seu ser é uno; (2) que o amor é bom, então o ser é bom; (3) que o amor é verdadeiro, então todo ser é verdade; e (4) que o amor evoca prazer, gozo, então todo ser é belo.

Somemos aqui que a epifania do ser só tem sentido se em aparência (Erscheinung) nós apreendemos a essência que se manifesta em si mesma (Ding an sich). A criança chega ao conhecimento não de uma pura aparência, mas de sua mãe ela mesma. Isto não exclui que nossa apreensão da essência se dê apenas através da manifestação e não diretamente em si mesma (São Tomás).

O Uno, o Bem, a Verdade, e o Belo, estes são o que nós chamamos os atributos transcendentais do Ser, porque eles ultrapassam todos os limites das essências e são coextensivos com o Ser. Se há uma distância insuperável entre Deus e sua criatura, mas se há também uma analogia entre eles que não pode ser resolvida em nenhuma forma de identidade, então deve também existir uma analogia entre os transcendentais – entre aquelas da criatura e daquelas em Deus.

Há duas conclusões a se tirar disso: uma positiva, outra negativa. A positiva: o homem existe apenas pelo diálogo interpessoal, portanto, pela linguagem, fala (em gestos, mímica ou em palavras). Porque então negar-se a fala com o Ser Ele mesmo? “No início era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a palavra era Deus” (Jo 1,1).

A negativa: supondo que Deus é verdadeiramente Deus (o que significa que ele é a totalidade do Ser que não necessita de criatura), então Deus seria a plenitude da Unidade, do Bem, da Verdade e da Beleza e, por consequência, as criaturas limitadas participam nos transcendentais apenas de uma forma parcial, fragmentária. Tomemos um exemplo: o que é a unidade em um mundo finito? É a da espécie (cada homem é totalmente homem, que é sua unidade), ou é o indivíduo (cada homem é indivisivelmente ele mesmo)? Unidade é então polarizada no domínio da finitude. Pode-se demonstrar a mesma polaridade para o Bem, a Verdade e a Beleza.

Eu construí então uma filosofia e uma teologia iniciando de uma analogia e não do Ser abstrato, mas do Ser como ele é encontrado concretamente em seus atributos (não categoriais, mas transcendentais). E como os transcendentais perpassam todo o Ser, eles devem ser internos a cada um dos outros; o que é verdadeiramente verdadeiro é verdadeiramente bom e belo e uno. Um ser aparece, ele tem uma epifania; nela há a beleza e nos faz maravilhar. Em aparecendo ele se dá a si mesmo, entrega a si próprio para nós: e isto é bom. E em se dando a si mesmo, ele fala de si, se desvela: é verdadeiro (em si mesmo, mas em outro para quem se revela).

Desse modo, pode-se construir, sobretudo uma teologia aesthetique (Gloria): Deus aparece. Ele aparece para Abraão, para Moisés, para Isaías e, finalmente, em Jesus Cristo. Uma questão teológica: como nós distinguimos sua aparição, sua epifania dentre centenas de outros fenômenos no mundo? Como nós distinguimos o verdadeiro e único Deus vivo de Israel dos ídolos que o cercam e de todas as tentativas filosóficas e teológicas de alcançá-lo? Como nós percebemos a incomparável gloria de Deus na vida, na Cruz, na Ressurreição de Cristo, a glória diferente de toda a glória deste mundo?

Pode-se então continuar com uma dramatique uma vez que Deus trava uma aliança conosco: como a absoluta liberdade de Deus em Jesus Cristo confronta a relativa, mas verdadeira, liberdade do homem? Haverá, talvez, uma luta mortal entre os dois, em que cada um vai defender contra o outro o que concebe e escolhe como o bem? Qual será o desenrolar da batalha, a vitória final?

Pode-se terminar com uma logique (uma teo-lógica). Como Deus pode fazer a si mesmo compreensível ao homem, como pode a Palavra infinita expressar a si mesma em um mundo finito sem perder seu sentido? Este é o problema das duas naturezas de Jesus Cristo. E como o espírito limitado do homem pode apreender o sentido ilimitado da Palavra de Deus? Este é o problema do Espírito Santo.

Esta é, portanto, a articulação da minha trilogia. Eu quis mencionar apenas as questões colocadas pelo método, sem chegar até as respostas porque isto iria muito além dos limites de um sumário introdutório como este.

Em conclusão, todavia, é necessário abordar brevemente a resposta cristã à questão colocada no início em relação às filosofias religiosas da humanidade. Eu disse que a resposta cristã, porque as respostas do Antigo Testamento e, a fortiori do Islã (que permanece essencialmente no invólucro da religião de Israel) são incapazes de fornecer uma resposta satisfatória à questão de por que Yahweh, por que Allah criou um mundo do qual ele não tinha necessidade para ser Deus. Apenas o fato é afirmado nas duas religiões, e não o porquê.

A resposta cristã está contida nestes dois dogmas fundamentais: no da Trindade e no da Encarnação. No dogma trinitário Deus é uno, bom, verdadeiro e belo porque é essencialmente Amor, e Amor supõe o “um”, o “outro” e sua unidade. E se é necessário supor o Outro, a Palavra, o Filho, em Deus, então a alteridade da criação não é uma queda, uma desgraça, mas uma imagem de Deus, mesmo não sendo ela mesma, Deus.

E como o Filho em Deus é o eterno ícone do Pai, Ele pode sem contradição assumir em si mesmo a imagem da criação, purificá-la, e fazê-la entrar em comunhão com a vida divina sem dissolvê-la (em um falso misticismo). É aqui que é necessário distinguir natureza e graça.

Todas as verdadeiras soluções oferecidas pela fé cristã residem, então, nestes dois mistérios, categoricamente recusadas pela razão humana que se faz a si mesma absoluta. É por causa disso que a verdadeira batalha entre religiões começa apenas depois da vinda de Cristo. A humanidade ira preferir renunciar a todas as questões filosóficas – no marxismo ou positivismo de todas as estirpes, a aceitar uma filosofia que encontre sua resposta final apenas na revelação do Cristo.

Prevendo isto, o Cristo mandou seus discípulos para todo o mundo como ovelhas entre lobos. Antes de fazer um pacto com o mundo é necessário meditar sobre esta comparação.

Originalmente publicado em Communio 15 (inverno de 1988). © 1988 Communio: International Catholic Review. Tradução minha, a partir do inglês.

G. Ferreira

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