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Uma nota de rodapé do Pós-Escrito

Abaixo, uma eloquente nota de rodapé do Pós-escrito conclusivo não-científico às Migalhas Filosóficas, de Kierkegaard, na tradução do Prof. Alvaro Valls (no prelo):

 

Assim também há de ser compreendido o ceticismo da filosofia hegeliana, aclamada por sua positividade. De acordo com Hegel, a verdade é o contínuo processo histórico universal. Cada geração, cada estádio deste processo está legitimado, e contudo é apenas um momento na verdade. Se aqui não entra um pouco de charlatanice, que ajuda a admitir que a geração na qual o Prof. Hegel viveu, ou essa que agora depois dele é imprimatur, que tal geração é a última e que a história do mundo passou, estamos todos no ceticismo. A apaixonada questão acerca da verdade nem mesmo se coloca, porque antes a filosofia ludibriou os indivíduos para que se tornassem objetivos. A verdade positiva hegeliana é tão enganadora quanto era a felicidade no paganismo. Só posteriormente se sabia se alguém foi ou não feliz; e assim a próxima geração fica sabendo o que era verdade na geração falecida. O grande segredo do sistema (mas isto fica unter uns [entre nós] assim como o segredo entre os hegelianos) é algo próximo do sofisma de Protágoras – “Tudo é relativo”, só que aqui tudo é relativo no progresso contínuo. Porém isso não serve a nenhum vivente, e se ele por acaso conhece uma anedota de Plutarco (nas Moralia) sobre Eudâmidas, um Lacedemônio, irá certamente pensar sobre ela. Quando Eudâmidas viu na Academia o ancião Xenócrates, perseguindo a verdade junto com seus discípulos, ele perguntou: Quem é este velho? E quando lhe responderam que era um homem sábio, um daqueles que perseguem a virtude, exclamou: “Quando, afinal, ele irá usá-la?” Provavelmente, foi também este progresso contínuo que provocou o mal-entendido segundo o qual, para libertar alguém do hegelianismo, precisa-se de um camarada treinado como o diabo na especulação. Longe disso; apenas se necessita bom senso, um vigoroso senso do cômico, um pouco de ataraxia grega. Afora na Lógica, e em parte também aí por uma luz ambígua que Hegel não deixou fora, Hegel e o hegelianismo são um ensaio no cômico. Provavelmente o finado Hegel já encontrou o seu mestre no falecido Sócrates, que, sem dúvida, achou alguma coisa para rir; caso Hegel tenha se mantido inalterado. Sim, Sócrates lá encontrou um homem com quem valeria a pena conversar e em especial questionar socraticamente (algo que Sócrates pretendia fazer com todos os mortos), para ver se saberia ou não alguma coisa. Sócrates deveria ter mudado significativamente se se deixasse impressionar, ainda que remotamente, caso Hegel começasse a declamar seus parágrafos, prometendo que tudo ficaria claro no final. – Talvez nesta nota eu possa achar um lugar adequado para algo que tenho para reclamar. Na Vida de Poul Møller foi apresentado apenas um único comentário que nos dá alguma ideia de como ele, numa época mais tardia, concebia Hegel. Em todo o resto, o honrado editor presumivelmente deixou-se guiar em sua abstenção pelo amor e pela piedade pelo falecido, por uma consideração escrupulosa para o que certas pessoas iriam dizer, ou um público especulativo e quase hegeliano iria julgar. Contudo, precisamente no momento em que pensava estar agindo por amor pelo falecido, o editor talvez tenha causado dano à sua imagem. Mais notável do que muitos aforismos impressos na coleção, ainda mais notável do que muitos episódios de juventude preservados pelo biógrafo, cuidadoso e com muito gosto, numa bela e nobre apresentação – ainda mais notável foi que P. M., quando tudo era hegeliano, julgava bem diferente; que, primeiro, por algum tempo, ele falava de Hegel quase com indignação, até que a natureza saudavelmente humorística que havia nele o ensinou a sorrir, especialmente do hegelianismo, ou, para recordar P. M. com mais clareza, o fez rir dele cordialmente. Pois quem esteve enamorado de P. M. e esqueceu o seu humor? Quem o admirou e esqueceu sua natureza saudável? Quem o conheceu e esqueceu sua risada, que fazia tanto bem à gente, mesmo quando não ficava totalmente claro do que é que ele estava rindo; pois às vezes sua distração deixava os outros perplexos.

G. Ferreira

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