Por esses dias, andei dando uma olhada novamente do livro de Richard Dawkins, The God Delusion, bem como lendo algumas coisas relacionadas por aí. Chega a ser enervante a complacência com o livro. Ergo:
1. O tratamento dado por Dawkins no capítulo 3, sobre as provas filosóficas da existência de Deus, chega ser ridículo. A começar pela linguagem que o autor utiliza ao tratar, por exemplo, do argumento de Santo Anselmo, no Proslogion. O autor diz:
“Let me translate this infantile argument into the appropriate language, which is the language of the playground.” (p. 80)
Vejamos: será que de fato a linguagem infantil do playground é a mais apropriada para lidar com um argumentos tratado rigorosamente por filósofos como Descartes, Kant ou Hegel? Prefiro apostar que não. Para além disso, sou terminantemente obrigado a discordar do prof. Idelber Avelar que, em um post sobre o livro, diz que Dawkins não pode ser acusado de não conhecer a fundo as “sutilezas” da argumentação dado que, de certo modo, a priori, ela é falsa ou, como comenta Avelar, que tal acusação seria análoga àquela que exigiria que um autor que se propusesse a refutar a astrologia, tomasse profundo conhecimento de sutilezas de posturas astrológicas contrárias. Entretanto, há aqui no argumento de Avelar (e talvez entre também no rol de falácias de Dawkins) uma pequena falácia: de fato, dado que as diversas tentativas de se provar a existência de Deus pela raz?o, sobretudo com argumentos a priori, caem em erro, questionar pelo conhecimento das finezas dos diversos argumentos que procuram provar a exist?ncia de Deus não é absolutamente relevante. Entretanto, falta aqui um termo médio: não está dado de antemão que tais tentativas são falsas. O objetivo do capítulo de Dawkins é, justamente, provar o erro e a inconclusividade presentes nos argumentos para a existência de Deus (S. Tomás, S. Anselmo etc.). é assim que ele descreve, no final do capítulo anterior, o próximo movimento de seu texto:
“But first, before proceeding with my main reason for actively disbelieving in God’s existence, I have a responsibility to dispose of the positive arguments for belief that have been offered through history.” (p. 73, destaque meu)
Assim, não é possível apelar para o fato de que os argumentos s?o inconclusivos para justificar a ignorância de Dawkins sobre eles. Em outras palavras, o autor só poderia prescindir de conhecer a fundo os argumentos se não fosse sua empreitada provar, exatamente, que são falsos.
2. Por falar em Kant, Dawkins saca o alemão da manga como aquele que viu o truque escondido no argumento anselmiano. Não quero me estender sobre a argumentação de Kant sobre o argumento ontológico na Crítica da Razão Pura, o que exigiria todo um preâmbulo sobre o projeto kantiano da Crítica, bem como explicitar todo o périplo do debate sobre os conceitos de essência e existência. Apenas quero manifestar que Dawkins tamb?m parece não conhecer o movimento da argumentação de Kant. Ele simplesmente diz que “existência” não é uma perfeição sem apoiar a análise na negação kantiana de que “existência” é um predicado real e, portanto, ele só diz algo sobre a posição (positio) do objeto e pede para ir além disso, uma intuição sensível que, por definição, é impossível no caso de Deus. Ora, a refutação de Kant advém de sua concepção de “existência” que está longe de ser unívoca na história da filosofia. Basta dizer que depois dele, Hegel retoma o uso do argumento a partir de pressupostos distintos dos de Kant. Assim, a apropriação que Dawkins faz de Kant não diz nada, já que nem explicita os seus pressupostos (coisa que alguém como Kant jamais deixaria de fazer).
3. Uma última palavra sobre o movimento argumentativo geral do livro: será que apontar inúmeros problemas das religiões (como explicitamente Dawkins faz em 6 dos 10 capítulos) é um bom argumento para se mostrar que Deus é um delírio? Mas como já lembrava Kierkegaard, Mundus vult decipi (o mundo quer ser enganado).
Baixe o livro de Dawkins aqui (em inglês).
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