Coluna de hoje, de Luiz Felipe Pond?, na FSP
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Na escurid?o
SOU PROFESSOR , entro em sala todos os dias. Minha impress?o b?sica ? que o que falta muitas vezes na sala de aula ? falarmos “a verdade”. Apesar de ser um c?tico em quase tudo, acredito que h? uma milagrosa rela??o entre o ser humano e “a verdade” quando ele percebe que ela ? dita sem medo.
Uma grande trai??o feita aos mais jovens ? atol?-los em “teorias a servi?o da emancipa??o”. Eu n?o quero emancipar ningu?m porque para isso teria que mentir. Mentimos para sobreviver, isso ? normal e civilizado, mas na sala de aula ? uma trai??o.
Calma, caro leitor! Sei que “cada um ? cada um”. Uma afirma??o forte como essa, “a verdade”, pode me custar muitos amigos. Nunca mais jantares inteligentes. Hoje em dia voc? aprende no jardim da inf?ncia que “tudo ? relativo”, “a verdade” n?o existe, e todos os males do mundo s?o fruto do patriarcalismo e da Igreja Cat?lica. Caricaturas rid?culas da hist?ria s?o feitas a servi?o da “liberdade”! Palavra j? banal, quase idiota.
Existem tamb?m as palavras de ordem que devem ser ditas em meio ?s ta?as de vinho. Vejamos algumas delas: sou a favor do aborto, do casamento gay, da comercializa??o de fetos abortados (n?o! Essa ainda n?o ? comum…) e n?o existe pecado. Qualquer coisa diferente, e de novo a amea?a: n?o te convido mais para jantar em casa. N?o vou entrar no teor em si desses clich?s e, falando s?rio, acho que h? muito sofrimento verdadeiro nesses dramas humanos. Uma boa dose de auto-estima se faz necess?ria para n?o cairmos de joelhos diante desta “nova repress?o”. Toda f?rmula para chegar ? auto-estima ? falsa, por isso resta-nos o sorriso da sorte ou da morte.
Quando falo “a verdade”, me refiro a coisas mais simples do que debates filos?ficos intermin?veis sobre a natureza da verdade absoluta ou a exist?ncia de Deus. Refiro-me ? luta cotidiana com nossa ca?tica condi??o humana e ainda termos que manter o bom humor e pagarmos as contas.
Refiro-me ?quilo que gente como ?talo Calvino chama de “dramas cl?ssicos”. O problema ? que para ensinar isso, antes de tudo precisamos conhecer “isso” (coisa que vai ficando rara em meio ao bl?bl?bl? do relativismo cultural e da democracia no ensino). E pior, n?o podemos ter medo. Um dos dramas humilhantes do “otimismo moderno” ? que para ser otimista temos que ser idiotas e negarmos os impasses assustadores da vida.
Explico-me: acho que os mais jovens ag?entam ouvir “a verdade” mais do que professores de meia-idade. Esses professores j? perceberam que a vida n?o ? a bobagem das utopias de Maio de 68, tipo “sexo livre e ? proibido proibir”, mas se calam diante dessa dolorosa consci?ncia. ?s vezes por uma mera quest?o de sal?rio. O pior ? quando a resist?ncia a isso se manifesta em meio ? silenciosa melancolia da idade avan?ada. Na velhice n?o h? festa e h? muito sil?ncio.
Por exemplo, o ci?me do Otelo de Shakespeare. Todo homem ? inseguro diante da mulher amada. ? um tipo de maldi??o. Quando n?o ? inseguro, ? porque n?o ama. Se ela for muito bonita, muito simp?tica e “circular muito por ai”, essa inseguran?a piora. Com isso n?o quero dizer que o homem deva “reprimir” a mulher para se sentir melhor, mesmo porque n?o adianta. Quero dizer que “papo cabe?a” e “f?rmulas de compromissos” n?o resolvem.
Em nossa ?poca, a cama do casal virou uma frente de trabalho. ? desgastante o fato de que devemos trabalhar “a rela??o” o tempo inteiro: nossos preconceitos, nossas inseguran?as, nossos fracassos. O mercado de trabalho nos esgota, e o amor ? uma trincheira. O imperativo da sa?de total (psicol?gica, pol?tica e social) ? uma praga que nos cobre como uma poeira invis?vel. Essa poeira nos sufoca, entrando pela boca. Explico-me: ou somos doentes ou somos rid?culos, nunca saud?veis.
Outro exemplo, a infidelidade da Madame Bovary de Flaubert. Quem nunca viu a tr?gica figura da infeliz envelhecida que nos aborda com a segunda ta?a de vinho branco nas m?os? Ela que sonhava com uma vida cheia de paix?es e acordou entre o t?dio do cotidiano e a for?a cega do desejo destrutivo. Qualquer menina de 18 anos ouve isso e reconhece na infeliz Emma Bovary um risco poss?vel: posso eu mesma virar uma Bovary, basta acreditar que a vida pode ser cheia de paix?es!
A fronteira entre a paix?o e o inferno ? invis?vel. Os seres humanos reais caminham nessa t?nue linha de sombra. Otelo, Bovary, voc? e eu, juntos, na escurid?o.
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