Houve um tempo feliz no qual o que se criticava na atividade científica e nos seus agentes era a demasiada ênfase na lógica sistemática que, já segundo Kierkegaard e Nietzsche, mas também Adorno e Camus, arrasta tudo para o plano da identidade massificadora. Entretanto, ao que parece, é para ela que talvez alguns dos mais “proeminentes” cientistas de hoje deveriam voltar. Não me refiro nem aquelas lógicas modernas. Uma boa olhada no velho Aristóteles evitaria problemas como o que encontramos na resenha do “avassalador” Richard Dawkins sobre o livro de seu colega Christopher Hitchens (Deus não é grande), publicada no caderno “mais”, da Folha de São Paulo, do domingo último (23/09).
Para além das singelas caracterizações de Hitchens como “pulverizador” de seus inimigos, mas dotado de uma romântica “cortesia à moda antiga”, há algumas coisas a considerar:
Tanto Dawkins quanto seu amigo de campanha “cometem” alguns argumentos estranhos. O ”cinturão ateu” (em oposição ao “cinturão bíblico” citado por Dawkins) se alinha no projeto de erradicar a crença em Deus sobretudo através de “provas” científicas da exponencial improbabilidade e não-necessidade da existência de Deus. Abstenho-me de lançar mão da objeção banal (qualquer aluno de 2º semestre de filosofia poderia já utilizá-lo com uma mínima perícia) de que toda prova de “improbabilidade” e de “não-necessidade”, não descarta nem logicamente a existência de Deus. Quero me ater ao alvo principal de críticas que, segundo a resenha de Dawkins, compõem o livro de Hitchens, a saber, os malefícios causados na história da humanidade pela religião. A divisa de Hitchens, citada pelo resenhista, é que “a religião envenena tudo”. Seguem-se análises de exemplos que, ao invés de argumentos ou provas parecem mais serem uma tentativa de deitar sobre o livro um verniz de erudição. E vai-se de Madre Teresa à perseguição de Rushdie pelos muçulmanos; dos casos de pedofilia da Igreja Católica nos EUA à “brilhante” descoberta exegética de erros de tradução nas Escrituras. Toda uma coleção de mazelas, maldades, ódio, fúria, vingança e perseguição proveniente das religiões é exibida. Há ainda no livro de Hitchens capítulos “pujantes” sobre a figura do porco no judaísmo e no islamismo, mas deixemos isso de lado. A meu ver, o problema surge agora. Cito Dawkins:
Um dos temas centrais de Hitchens é que os deuses são criados pelo homem, e não o contrário (p. 6)
Todo o rosário (desculpem-me, não resisti) que “provaria” que a religião envenena tudo também gera a conclusão de que… Deus não existe. Ora, a menos que se esteja querendo agir de má-fé, a lógica não deixa que se passe da existência da violência nas religiões ou mesmo do “erro” em certas concepções religiosas do mundo ao “Deus não existe”. Muitos pontos podem aqui ser evocados, como o imperdoável desconhecimento deste senhor, apontado como muito erudito por seu resenhista, da presença dessa “tese” no pensamento ocidental, bem como seus desdobramentos na história do mesmo pensamento (Santo Tomás é tomado como ingênuo no capítulo 5), as gigantescas discussões sobre a validade dessas “provas” apresentadas ou ainda sua opinião sábia sobre Platão, sobre quão ridículas são as tentativas de uma aproximação entre fé e razão, divergente inclusive daquela do paleontólogo Stephen Jay-Gould, cuja leitura é recomendada pelo livro de Hitchens. Ora, mas aceitar a utilização de calamidades religiosas como argumento contra a existência de Deus equivale a aceitar a contraposição da chamada prova moral da existência de Deus.
A partir daí, o rigor e a cientificidade pouco, ou nada, tem a dizer. Apenas é possível também ressaltar o tom apologético que tantos outros identificam em Dawkins e Hitchens, que beira o fanatismo religioso. Não posso deixar também de lembrar, já que falamos de lógica, finalmente, do famoso debate entre Bertrand Russel e o Pe. Copleston. Perguntado pelo clérigo se ele estaria dizendo que a não-existência de Deus poderia ser provada, Russel responde: “No, I should not say that”..
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