Obama sobre religião e política ou Sobre Ser e Parecer

Por favor, sigam o pequeno roteiro abaixo:

1. Vejam o vídeo. É um trecho do discurso de Barack Obama proferido em 28/06/2006 no qual o semi-deus Obama fala sobre religião e secularismo:

2. Leiam dois discursos: este e este.

Caso vocês ainda não vejam alguns problemas básicos, continuem lendo. 

2.1. Em linhas gerais, o vídeo mostra o então senador Obama como apologeta de um certo tipo de secularismo. Este certo tipo de “secularismo” pode ser subsumido àquele apresentado por Charles Taylor em seu colossal A secular age, como o banimento de Deus ou de valores que se referem à religiões da esfera pública por causa de tal referência.

Para defendê-lo, o novo presidente desenha o seguinte “argumento”:

a) Seu país não é (se já foi algum dia) mais exclusivamente cristão. Possui uma multiplicidade incontável de crenças religiosas (inclusive a des-crença);

b) contudo, caso pudéssemos restringir a população a cristãos, ainda assim o recurso ao universo epistêmico da religião (se é que ele existe), nos seria vedado, para dele derivar quaisquer elementos para políticas e discussões públicas. Dito de outro modo, não poderíamos fazer referência à religião (no caso, cristã) para nos pautarmos publicamente (leia-se fazer política) já que

c) há uma multiplicidade de “cristianismos” ou denominações;

c’) há uma diversidade de ensinamentos bíblicos patentemente conflitantes e anti-éticos.

c”) Seguem-se exemplos:
– do Levítico, que aceita a escravidão e proíbe o consumo de frutos do mar;
– do Deuteronômio, que exorta o apedrejamento do filho infiel;
– dos Evangelhos, que têm no Sermão da Montanha seu ápice, cuja radicalidade é inatingível.

– o que leva a

d) a democracia exige que os que crêem “traduzam suas preocupações em valores universais, ao invés de valores específicos de cada religião”;

e) o que os submete à discussão “e sejam influenciáveis pela razão”;

f) caminho vedado aos que têm fé porque:

f’) política é “persuasão” e “negociação”; é “a arte do possível”;

f”) “a religião não permite negociar”; é “a arte do impossível”.

Assim conclui Obama pela exclusão do discurso cujo fundamento é religioso da dimensão dita pública.

***

Vamos pontualmente:

1. O centro do argumento, que se erige a partir de “c”, está sobre um pressuposto escondido mas de fácil veiculação e aceitação entre nossos contemporâneos. Talvez por isso ele passe tão despercebido e goza de tamanha inquestionabilidade, a saber, os cânones da teologia liberal, tanto em suas vertentes mais originárias quanto em sua degringolação moderna.

O caminho é simples: o Iluminismo – e com ele toda a modernidade e seus derivados – coloca em cheque a validade epistêmica dos dizeres da religião. Isso equivale a dizer que mesmo a possível objetividade das verdades de fé é absolutamente excluída. Some-se a isso o sucesso tecnicista da ciência a partir do século XIX (cf. Adorno e Horkheimer). Resta à teologia e ao pensamento sobre a religião que não quer encampar uma disputa racionalmente séria, recuar e postular, como Schleiermacher, que a fonte da religião não é de fato, objetiva – como um conjunto de teses às quais se deve aderir – mas um sentimento interior, subjetivo, uma intuição interna que é, neste caso, o da extrema dependência para com uma alteridade. É sintomático que o subtítulo do principal livro de Schleiermacher sobre o assunto – Sobre a Religião – seja “para seus cultos desprezadores”. Está então consumado que o domínio da religião é o da interioridade e da subjetividade oposta ao domínio do que é culto.

A religião é então o espaço do sentimento e da anti-racionalidade, registro cujo posse é de exclusividade da ciência (natural, mais especificamente). Mesmo a filosofia virou uma coleção de citações e opiniões sem real pretensão objetiva. Pretensão obviamente proibida também à teologia.

É só a partir desse ponto de vista que Obama pode dizer o que diz. Entretanto, o que acontece é que nada disso é óbvio e ao abrigo de críticas graves.

2. A “exegese” bíblica de Obama chega a ofender. Lê as Escrituras como quem lê o jornal matutino, sem se atentar para a hermenêutica. Homens como Spinoza, o próprio Schleiermacher, Paul Ricoeur ou H-G. Gadamer ficariam corados ao ver um presidente de tamanho porte lendo as Escrituras – com textos que datam de muitos milênios atrás – com tamanha ignorância exegética. É extremamente curioso como ninguém pensa poder prescindir de conhecimentos circundantes para uma correta leitura da Odisséia, mas acha óbvio ler a Bíblia ipsis literis.

3. As citações de Obama em “d” e “e” são pérolas. O pressuposto da teologia liberal fica explícito aqui. As opiniões do domínio da religião só dizem respeito ao foro íntimo e, assim, carecem necessariamente de objetividade e universalidade, sobretudo porque não se submetem à razão.

O senhor Obama está convidado a explicitar o que entender por “razão”. É o que as ciências pós-iluministas praticam hoje, na quals a razão se identifica e se reduz completamente ao seu caráter matematizante do mundo (sem se dar conta que desde Kant a própria matemática já não é mais parâmetro de rigor, clareza e distinção)? É simplesmente aquela razão instrumental que se reduz à técnica e expulsa a contemplação e a reflexão em si (= theorêin, em grego), já provada por Aristóteles como, essa sim, a dimensão mais fina e aguçada da razão, para além da qual nos é realmente impossível chegar? Ou então negar que Agostinho, Tomás de Aquino, Duns Scotus, Suárez, Pascal, Descartes, Kant e tantos outros são racionais?

Obama também fala de “valores universais” sem perceber que o faz no mais religioso dos sentidos. Só quem é absolutamente crente consegue crer em “valores universais” por pensar que eles estão para além do desenvolvimento histórico, alojados numa instância superior e transcendente, como em Deus. Os Dez Mandamentos são para o crente “valores universais”. A compaixão e a ética para o não-crente “estritamente racional” (em sentido estrito) são construtos que muito bem podem ser vistos como estando a serviço de determinadas classes ou interesses (uma breve espiada na Genealogia da moral, de Nietzsche, já bastaria).

Sobre o banimento da religião da esfera publica, só posso citar um trecho de um dos discursos linkados acima:

Aqui gostaria, brevemente apenas, de relevar que John Rawls, embora negando às doutrinas religiosas compreensivas o carácter da razão “pública”, todavia vê na sua razão “não pública” pelo menos uma razão que não poderia, em nome de uma racionalidade secularizadamente insensível, ser simplesmente desconhecida por aqueles que a defendem. Para além do mais, ele vê um critério desta razoabilidade no facto de tais doutrinas derivarem de uma tradição responsável e motivada, tendo sido durante um longo período desenvolvidas argumentações suficientemente boas em defesa da respectiva doutrina. Nesta afirmação, parece-me importante o reconhecimento de que a experiência e a demonstração ao longo das gerações a base histórica da sabedoria humana constituem também um sinal da sua razoabilidade e do seu significado duradouro. Diante duma razão não histórica que procura autoconstruir-se somente numa racionalidade não histórica, a sabedoria da humanidade como tal a sabedoria das grandes tradições religiosas deve ser valorizada como realidade que não se pode impunemente lançar para o cesto da história das ideias.

Voltemos à pergunta inicial. O Papa fala como representante de uma comunidade crente, na qual, durante os séculos da sua existência, amadureceu uma determinada sabedoria da vida; fala como representante de uma comunidade que guarda em si um tesouro de conhecimento e de experiência ética, que se revela importante para toda a humanidade: neste sentido, fala como representante de uma razão ética.

A religiosidade participa da vida pública muito antes de coisas como a “democracia”. Nem mesmo Rawls, crítico da ingerência religiosa na esfera pública, consegue fugir ao paradoxo de querer excluir uma razão não-pública que é uma das maiores expressões dos paradigmas da razão pública. Quem, de fato, é “não influenciável pela razão”?

4. Por fim, o senhor presidente fala do que realmente conhece, a política. Segundo ele, seu cerne é a persuasão, o convencimento e a negociação…

Ahn.. vamos deixar falar quem conhece:

Sócrates – Então, prossigamos, e consideremos o seguinte: não dizes por vezes que alguém aprendeu alguma coisa?

Górgias – Sim.

Sócrates – E também que acreditou em algo?

Górgias – Perfeitamente.

Sócrates – E és de parecer que ter aprendido e ter crido sejam a mesma coisa que conhecimento e crença? Ou são diferentes?

Górgias – A meu ver, Sócrates, são diferentes.

Sócrates – É certo o que dizes. Tens a prova no seguinte: Se alguém te perguntasse: Górgias, há crença falsa e crença verdadeira? responderias afirmativamente, segundo penso.

Górgias – Sim.

Sócrates -E conhecimento, há também falso e verdadeiro?

Górgias – De forma alguma.

Sócrates – O que prova que saber e crer são diferentes.

Górgias – É certo.

Sócrates – Apesar disso, tanto os que aprendem como os que crêem ficam igualmente persuadidos.

Górgias – Exato.

Sócrates – Podemos, então, admitir duas espécies de persuasão: uma, que é a fonte da crença, sem conhecimento, e a outra só do conhecimento?

Górgias – Perfeitamente.

Sócrates – De qual dessas persuasões se vale a retórica nos tribunais e nas demais assembléias, relativamente ao justo e ao injusto? Da que é fonte de crença sem conhecimento, ou da que é fonte só de conhecimento?

Górgias – Evidentemente, Sócrates, da que dá origem à crença.

Sócrates – Então, ao que parece, a retórica é obreira da persuasão que promove a crença, não o conhecimento, relativo ao justo e ao injusto?

Górgias – Exato.

Sócrates – Sendo assim, o orador não instrui os tribunais e as demais assembléias a respeito do justo e do injusto, mas apenas lhes desperta a crença nisso. Em tão curto prazo não lhe fora possível instruir tamanha multidão sobre assunto dessa magnitude.

Górgias – Não, de fato.

E ainda acusaram Sócrates de impiedade…

G. Ferreira

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