Na epígrafe de O conceito de Angústia, S. Kierkegaard lamentava que o tempo das distinções havia passado e que, quem quer que amasse fazer distinções, era visto como uma alma excêntrica. Se isto valia para o século XIX, não é menos verdade que vale ainda hoje. Começo com este reparo porque penso que, em primeiro lugar, grande parte das reações acerca da nomeação da Prof. Dr. Anna Cintra pelo Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o Cardeal Dom Odilo Scherer, como Reitora desta universidade provêm de uma série de distinções não feitas e da ingerência de elementos absolutamente estranhos a uma discussão razoável. E em segundo lugar, o faço não sem um certo muxoxo porque sei que até o fim deste texto, muitos dos que o lerão borrarão como num passe de mágica todas as distinções que pretendo fazer aqui. Que algumas distinções evidentemente devem ser feitas, percebe-se por um sem número de manifestações que diariamente se podem ver na internet ou na mídia tradicional, que tratam um sem número de elementos presentes nos acontecimentos e nas reações a estes como se constituíssem um bloco único e um único problema que, pelo que se vê, poderia ser expresso na seguinte asserção: a Aquidiocese de São Paulo (leia-se Igreja Católica), através de D. Odilo e da Fundação São Paulo, estão desrespeitando a democracia e a autonomia universitárias e ingerindo excessivamente na PUC-SP. Pois bem, vamos às explicitações e distinções.
A Universidade Católica
Não deveria ser uma informação nova para aqueles que se imiscuem neste assunto, que a Igreja possui alguns documentos que dispõem sobre as diretrizes de suas universidade e, em especial, das Pontifícias. Entre tais documentos, o conhecimento da Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiæ (Do Coração da Igreja), do Papa João Paulo II. O documento é interessante em sua totalidade, mas cito aqui algumas partes específicas:
13. Uma vez que o objectivo de uma Universidade católica é garantir em forma institucional uma presença cristã no mundo universitário perante os grandes problemas da sociedade e da cultura, ela deve possuir, enquanto católica, as seguintes características essenciais:
1. uma inspiração cristã não só dos indivíduos, mas também da Comunidade universitária enquanto tal;
2. uma reflexão incessante, à luz da fé católica, sobre o tesouro crescente do conhecimento humano, ao qual procura dar um contributo mediante as próprias investigações;
3. a fidelidade à mensagem cristã tal como é apresentada pela Igreja;
4. o empenho institucional ao serviço do povo de Deus e da família humana no seu itinerário rumo àquele objectivo transcendente que dá significado à vida.
Ora, como uma instituição confessional – como o são outras universidades, tais como a Presbiteriana (Mackenzie) ou a Metodista -, também não deveria causar espanto que sua índole seja marcada justamente pela confissão de fé e dos valores a ela atrelados. Contudo, isso jamais foi prerrogativa para a exclusão, do interior da universidade católica, do diálogo e da discussão com o universo fora da Igreja; quem disser o contrário o faz por ignorância ou má-fé. Neste sentido, a Constituição Apostólica afirma contra qualquer tolice dita nesta direção:
26. A Comunidade universitária de muitas instituições católicas inclui colegas pertencentes a outras Igrejas, a outras Comunidades eclesiais e religiões, e bem assim colegas que não professam nenhum credo religioso. Estes homens e estas mulheres contribuem, com a sua formação e experiência, para o progresso das diversas disciplinas académicas ou para a realização de outras tarefas universitárias.
E ainda: “§ 5. Uma Universidade Católica possui a autonomia necessária para realizar a sua identidade específica e cumprir a sua missão. A liberdade de investigação e de ensino é reconhecida e respeitada segundo os princípios e os métodos próprios de cada disciplina, sempre que sejam salvaguardados os direitos dos indivíduos e da comunidade, e dentro das exigências da verdade e do bem comum.” A mesma PUC-SP pode dar o exemplo do que vai acima. Que se ouse fazer um levantamento sobre a população católica ali presente e confronte-se com a admoestação que a mesma Constituição faz no § 4 do Artigo 3: “Para não pôr em perigo tal identidade católica da Universidade ou do Instituto Superior, evite-se que os professores não católicos venham a constituir a maioria no interior da Instituição, a qual é e deve permanecer católica”. Não só esta maioria não existe ali, como também não tenho notícia de oposição sofrida por conta de sua não pertença à Igreja. Nem o que vai no § 2 do mesmo artigo serve, na prática, para alguma coisa e igualmente não tenho notícia de alguma demissão ou caça às bruxas por conta da não obediência deste ponto em específico: “No momento da nomeação, todos os professores e todo o pessoal administrativo devem ser informados da identidade católica da Instituição e das suas implicações, bem como da sua responsabilidade em promover ou, ao menos, respeitar tal identidade”.
O que exponho reflete-se, naturalmente, no estatuto da PUC-SP que tem no Grão-Chanceler e – por ser não apenas Católica, mas Pontifícia – no Papa em última instância, seus dirigentes máximos (cf. Art. 14 do Estatuto). Claro está, que os estatutos e as diretrizes podem ser discutidos; o próprio estatuto da Fundação São Paulo prevê a mudança ou mesmo extinção da Fundação. Contudo, que uma distinção seja feita: não é em favor desta causa que se insurgem hoje; fazem-no porque as diretrizes acordadas entre todos foi, vejam só, postas em prática. Qualquer discussão sobre a identidade de uma universidade católica, bem como de seus rumos e sua administração, deveria partir da explicitação de tais pontos fundamentais, salvo se não se pretende que tal discussão seja séria. Mas não temo apostar que quase ninguém nas universidades católicas em geral jamais ouviu falar no documento que cito acima.
A ingerência da Igreja
O que disse acima deveria servir de base para o enfrentamento da questão que propusemos acima, a saber, sobre se a ingerência da Igreja afeta a democracia universitária. Após certa explicitação do que é a universidade católica, deveríamos nos perguntar sobre o que entendem por “democracia universitária” aqueles que lha defendem. Assim, não se pode ingenuamente ignorar que, mesmo entre professores e funcionários, a democracia universitária significa que a vontade da comunidade acadêmica deva ser soberana, ainda que – e principalmente – esta comunidade escolha contra a Igreja e contra a catolicidade da universidade. Só podemos concluir então pelo entendimento no mínimo curioso das expressões “ingerência excessiva” e “democracia universitária”: pela primeira, reclama-se que aqueles que erigiram e mantêm viva e atuante uma instituição intrometem-se demais naquilo que é seu e, pelo segundo, que aqueles devem ceder quando inimigos ou opositores declarados dos patronos desta instituição dizem que estes interferem naquilo que construíram. Se não são estes os sentidos, prove-se então como tal ingerência estaria sendo excessiva e prove-se igualmente o sentido diverso de democracia que estaria sendo ameaçado naquela universidade; que o digam as “Católicas pelo Direito de Decidir”, organização sabidamente anticatólica e que, não obstante, tem a PUC-SP como seu Quartel General, ou ainda os adeptos e propugnadores da “Teologia da Libertação” que sempre tiveram – e ainda têm – acolhida fraterna na mesma pontifícia universidade, ainda que tenham como pilar indiscutível a repulsa à “Roma”.
Desse modo, convém lembrar as palavras do beato Cadeal Newman no prefácio de suas conferências sobre a ideia de Universidade:
The view taken of a University in these Discourses is the following:—That it is a place of teaching universal knowledge. This implies that its object is, on the one hand, intellectual, not moral; and, on the other, that it is the diffusion and extension of knowledge rather than the advancement. If its object were scientific and philosophical discovery, I do not see why a University should have students; if religious training, I do not see how it can be the seat of literature and science.
Nem é objetivo da universidade ser “religious training”, tampouco há outro sentido mais genuíno de democracia na universidade senão o de “diffusion and extension of knowledge”; para além disso, recai-se na ideologia e na propaganda política.
Porém, ao menos como exercício, que levemos a sério a tese daqueles que advogam o afastamento da Igreja da PUC-SP. Neste sentido, uma das questões incômodas que realmente deveriam ser feitas é: os alunos, professores e funcionários estariam, de fato, dispostos a rechaçar em absoluto a ingerência da Igreja frente a tantos elementos e pontos nos quais a PUC-SP depende visceralmente dela? Estariam dispostos a abrir mão da tradição e solidez que a Igreja, ainda que vacilantemente, transfere à universidade? Aceitariam de bom grado ver sua universidade transformar-se do dia para a noite em mais uma das centenas, quiçá milhares, de universidades particulares brasileiras cujo maior prestígio consiste na imponência de seus prédios e no número absurdo de alunos reprovados em testes e enjeitados pelo mercado de trabalho? Estariam dispostos a abdicar, por fim, do aporte milionário de dinheiro que a Arquidiocese de São Paulo faz chegar à PUC-SP, a despeito do clamor das massas contra sua “ingerência despótica”? Ou farão como a ex-PUC do Peru que disse continuar a usar os títulos de “Pontifícia” e “Católica” de acordo com sua conveniência?
A revolta como gozo da sensibilidade
Não se deveria ignorar o aspecto quase patológico que motiva grande parte das reações quando se trata de Igreja Católica. Tampouco dever-se-ia esquecer do gozo estético que está por detrás de toda revolta. Tais lembranças são pertinentes, porque muito pouco de reflexão está presente nas reações à decisão do Cardeal, sobretudo no que diz respeito a questões práticas do futuro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em 2006, quando o Grão-Chanceler era o Cardeal D. Cláudio Hummes, a PUC-SP devia em torno de 100 milhões de reais (os 82 milhões aí citados correspondiam a apenas uma parte da dívida). Quando naquela ocasião houve cortes e demissões, os revoltosos de hoje eram, vejam só, os mesmos revoltosos que clamavam pela saída da Igreja da administração da universidade. D. Cláudio chegou a ir conversar com o então presidente Lula em vista de auxílio do BNDES. Sabe-se que a Arquidiocese contraiu mais empréstimos a fim de remediar a situação da universidade. Convém perguntar: para além do frenesi revolucionário, quais são as abordagens e propostas razoáveis para as superações das crises e problemas universitários? Quais deles assumiriam tais dívidas astronômicas? Quem tem soluções racionais frente a problemas candentes, como por exemplo, o de que a PUC-SP continuar a oferecer cursos deficitários por conta da importância social destes? Novamente, é visível que opera em grande parte das vezes uma dinâmica que sobrepõe o gozo estético da oposição – afinal, é de se contar nos dedos aqueles que, dentro de uma universidade, não sonham em viver sob um sistema opressivo e despótico a fim de terem uma “revolução” para chamarem de sua – ao tratamento racional de problemas.
“Tudo posso, mas nem tudo me convém”
Não posso deixar de comentar, contudo, que a Fundação São Paulo comete ao menos um erro. Não tenho dúvidas que a Fundação queira promover a melhoria da universidade. Assim, relembrando as palavras de São Paulo Apóstolo, se de fato não é um dever, é conveniente que haja uma frente de diálogo mais aberto para com a comunidade universitária séria a fim de uma união de esforços em vista do mesmo objetivo. Sabemos que o Senhor explicava detalhadamente o que queria aos seu discípulos mais próximos. Mas não deixava de dar aos demais ao menos as parábolas.
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