Em 2005 publiquei este post, por ocasi?o do falecimento de um amigo. Hoje, por conta de outro falecimento, posto novamente.
Sob certo aspecto, Stalin – que foi um sujeito execr?vel – estava correto ao dizer que a morte de uma multid?o n?o era propriamente ‘morte’; morte ? apenas o falecimento de um ente querido,de um amigo. Facilmente entende-se o que aqui quero dizer: s? experienciamos a brutalidade da morte quando aquele que morre ? algu?m social, hist?rica e pessoalmente delimitada. Somente quando esses tr?s vetores convergem para um determinado ponto – o ‘quem’ morre – ? que tal fato mostra-se com toda a opacidade diante de quaisquer id?ias mediadoras. N?o se trata aqui de um discurso apolog?tico ou um discurso de tese; ? antes de tudo uma torrente de pensamentos que acompanham outras tantas torrentes – sejam elas de l?grimas, palavras ou ainda aqueles sentimentos desconexos que experimentamos nestes momentos – nascidas do falecimento de um amigo.
N?o demanda grande quantidade de pensamento a percep??o que n?o fazemos experi?ncia da morte propriamente dita. A nossa ‘experi?ncia’ da morte ? sempre da morte dos outros. Concorda-se, ent?o, facilmente com Epicuro quando esse diz que a morte n?o ? nada para n?s pois n?o a vivenciamos. Mas
sou obrigado a discordar duramente dele quando diz que por esse motivo n?o devemos tem?-la ou preocupar-nos com ela. Mesmo desconhecendo sua ess?ncia, o que ela ? na verdade, os fen?menos que apresenta s?o sujos e terr?veis. A imagem da qual Fernando Pessoa se utiliza – de que morrer ? como dobrar uma esquina; ? s? n?o ser mais visto – aqui tamb?m n?o serve para nada e talvez at? aumente o nosso pavor. N?o ser mais visto ? des-aparecer, e por conseq??ncia ser esquecido (l?the, em grego). Para insinuar o que pretendo indicar ? suficiente lembrar o voc?bulo ‘Verdade’ em grego – aleth?ia – que nos remete a n?o-esquecimento. Desaparecer, portanto, ? a irrup??o da mentira e a nossa raz?o treme diante de tais palavras. Isso talvez aponte para o fato de que nem a poesia seja competente para lidar com tal assunto.
A morte ? assim, algo dif?cil de se apanhar pelo discurso. Os tr?s principais modos de discurso sobre a morte elencados por Plat?o, no F?don – o da f?sica (entendida como representante das hoje chamadas
‘ci?ncias naturais’), o da trag?dia (literatura cat?rtica) e o do mito (religioso) -, n?o esgotam de maneira alguma o que ? a morte; todos os tr?s s?o, de certa maneira, verdadeiros e falsos, d?o e n?o d?o conta do objeto, que por sua pr?pria natureza est? sempre, como possibilidade, conosco, mas nunca diante de n?s, como uma ?rvore ou um copo est?o diante de n?s. Percebe-se, aqui, bem a dimens?o do problema e sua profundidade angustiante, a ponto de for?ar S?crates a deter seu discurso e propor a seus interlocutores que apenas creiam em suas palavras… Como nos diz um fil?sofo de nossos dias: ‘A raz?o ? impotente ante os gritos do cora??o’.
II
Mas n?o me sinto satisfeito em abandonar tal discurso no meio do caminho. Assim, quero fazer um salto. Quero novamente deixar claro que n?o se trata aqui de apolog?tica, catequese ou afins. Mas sim, trata-se de conforto, esperan?a e f?. Apenas registro meu lamento sobre a incapacidade da modernidade (ou ‘p?s-modernidade’, como alguns dizem) de ver nas verdades de f?, conte?do no?tico intelig?vel, coerente e que incremente nossa experi?ncia. Dito isso, prossigamos.
Muito j? se falou sobre a ang?stia da morte dentro do horizonte do cristianismo e meu redobro n?o seria nada valioso sen?o para sanar um desejo de refor?ar em mim e em alguns dos meus leitores, certas verdades e significa??es. Quero evocar aqui a c?lebre passagem exposta no Evangelho segundo Jo?o (cap?tulo 11), sobre a morte de L?zaro. Nela, asirm?s de L?zaro mandam avisar Jesus que aquele – ‘amado’ por este (Jo.11,3) estava doente. A atitude tomada por Jesus ?, a princ?pio, no m?nimo curiosa: espera ainda dois dias antes de ir para a Jud?ia. Ao chegar, Jesus sabe que seu amigo est? morto (Jo. 11,15). Atenhamo-nos,por um instante, ?s figuras de Marta e Maria, irm?s de L?zaro. Elas criam obstinadamente Naquele a quem mandaram chamar. Ele poderia ter curado seu irm?o com apenas uma palavra, como fizera com o servo do centuri?o (Lc. 7, 6ss), mas n?o o fez. Elas viram inclusive o pr?prio Jesus derramar l?grimas (v. 35). ? exigido delas ent?o, o mesmo salto que tentamos promover; aquele que ultrapassa superabundantemente o dom?nio do fen?meno e acessa uma Verdade para al?m de nossas defini??es; o salto da f?. Elas pr?prias viram o Senhor se angustia reangustiaram-se com ele. Mas aqui h? uma novidade em rela??o a tudo o que foi dito e as palavras de Cristo bem nos dizem: “Esta doen?a n?o ? para a morte, mas ? para a gl?ria de Deus (v. 4) … E, por causa de v?s, eu me alegro por n?o ter estado l? [antes da morte de L?zaro] pois assim podereis crer” (v.15).
A tal novidade ? justamente o ultrapassar-se totalmente o campo do poss?vel e do previs?vel. ? esperar firmemente no ‘adiante’. ? angustiar-se com o esp?rito j? antegozando sua vit?ria. ? o m?ximo que consegue-se dizer pois ? o m?ximo da Verdade. E, mesmo se nosso ser se estremece nestes momentos onde a vis?o se turva, tenhamos a convic??o de que mesmo “se o nosso cora??o nos acusa, Deus ? maior que o nosso cora??o e conhece todas as coisas” (1Jo. 3,20).
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Fiquei impressionada com o amplo conhecimento no desenvolver do assunto,
Parab?ns!
Obrigado pelo elogio, Gabriela. Apare?a sempre e comente!
Abra?o